Texto para discussão no eixo “2. Qual a possibilidade de obter melhorias por meio de conquistas sindicais?”
Por R. Padial (Transição Socialista)
1. Introdução da questão
Este é o primeiro texto que pretendemos desenvolver sobre o tema das reivindicações necessárias à classe trabalhadora, na luta pela superação do capitalismo. Neste primeiro momento trataremos das reivindicações a serem defendidas nos sindicatos, referentes a salários e horas de trabalho. No texto de chamado para conformação do Comitê de Enlace, propusemos como primeiro tema para debate a seguinte compreensão usual da chamada “esquerda”:
“A) A concepção de que é possível realizar melhorias nas condições de vida da classe trabalhadora (diminuir seu grau de exploração), no médio e no longo prazos, por meio de conquistas sindicais referentes a aumento de salário e diminuição de jornada;”
Trata-se, por exemplo, da defesa – por parte da nossa “esquerda socialista” – de elevação do nível de vida da classe trabalhadora por meio de “ganhos reais” nos salários e diminuições fixas nas jornadas de trabalho (por exemplo, de 40h para 36h).
Ainda no texto de chamado para a conformação do Comitê de Enlace, apontamos um pouco o tom da nossa crítica às reivindicações sindicais usuais:
“Há mais de cento e cinquenta anos Marx ensinou, em O Capital, que as reivindicações usuais do movimento operário – ‘aumento salarial’ e ‘diminuição da jornada de trabalho’ – não necessariamente se contrapõem à acumulação capitalista. Marx demonstrou que a burguesia pode sim, muito bem, em determinadas condições, aumentar salários e diminuir jornadas sem afetar o grau de exploração da classe trabalhadora pelo capital. Esse grau pode até ser aumentado em tais condições. É nesse hiato – entre a luta usual por salários e jornada, de um lado, e a manutenção impassível das leis gerais da acumulação capitalista, de outro – que se assenta a burocracia sindical atual (inclusive a da ‘esquerda’ socialista).”
Este texto visa a demonstrar alguns elementos do que consta acima. Nosso intuito é abrir a discussão sobre a possibilidade de abandono ou superação do programa sindical usual da chamada “esquerda”. Devido aos limites de debate, neste texto nos voltaremos mais a questões referentes a salário (embora ao final passemos pelo problema do desemprego, dentro da reflexão sobre a regulação dos salários). Noutro texto que prepararemos, apresentaremos críticas às concepções da “esquerda” sobre diminuição fixa da jornada de trabalho. Vejamos, portanto, questões referentes a salário, do ponto de vista de Marx.
2. O ensinamento de Marx a respeito das formas de salários
A nosso ver, Marx observava a forma do salário sob diferentes pontos de vista. Algumas maneiras de compreensão do salário – ou de defesa dos salários – não estão em necessária contradição com a lei geral da acumulação capitalista (sobre essa lei, falaremos melhor pouco à frente). Isso significa que a luta em nome de algumas formas de salário é aceitável por parte do capital e atém-se a seus limites. Cremos que é na luta por tais formas aceitáveis que se ampara a burocracia sindical (mesmo a dita de “esquerda”, “socialista”, “revolucionária”). Por outro lado, nós, como revolucionários, devemos reivindicar um tipo de conquista salarial que necessariamente contradiga a acumulação capitalista.
Brevemente, as formas principais para se compreender o fenômeno do salário são, do nosso ponto de vista, as seguintes: o salário nominal, o salário real e o salário relativo. Tratemos de cada uma.
2.1. O salário nominal
O salário nominal é descrito assim por Marx, em O capital: “A soma de dinheiro que o trabalhador recebe por seu trabalho diário, trabalho semanal e assim por diante constitui seu valor nominal”[1]. O salário nominal, diz Marx pouco acima desse trecho, é o “valor de troca da força de trabalho”. Em suma: ele é o salário conforme aparece no holerite do trabalhador, em número, em nome, como mera soma de dinheiro. Tal modo de ver o salário, por si só, não diz nada, pois está fora de qualquer relação. Por exemplo, um trabalhador por ganhar hoje R$ 2.000 e amanhã R$ 2.200. Teria ele ficado mais “rico”? Não se sabe, pois isso depende, obviamente, de outros fatores – e o primeiro deles é a quantidade de mercadorias que esse salário nominal pode comprar. Se hoje o trabalhador que recebe R$ 2.200 compra menos mercadorias do que quando recebia R$ 2.000, terá ficado mais pobre.
Esse problema um tanto óbvio nos dá a chave para a reflexão sobre a forma do salário “real”, que também não apresenta dificuldades.
2.2. O salário real
Temos aqui a forma sobre a qual se ampara a burocracia sindical. Ela adora esbanjar – sempre que pode – “ganhos reais”. Além disso, a desvalorização do “salário real” é sempre muito sentida pelo trabalhador. A desvalorização do salário real muitas vezes dá base a revoltas espontâneas, “selvagens”. Por isso, a defesa do salário real não pode ser desprezada pelos revolucionários. Todavia, como veremos, a luta pela manutenção do salário real não necessariamente tem um caráter revolucionário; não é a forma socialista de luta dos trabalhadores em defesa dos seus salários.
Em que consiste afinal o salário real? A resposta, bastante conhecida – e já contida na reflexão sobre salário nominal –, é a seguinte: o salário real “é a massa dos meios de subsistência, na qual o valor [da força de trabalho] se converte”[2]. O salário real não é uma cifra isolada – que por si só nada diz –, mas essa cifra nominal na relação com as mercadorias que ela pode comprar. O “salário real” é, por isso – por estar numa relação – uma forma mais avançada de compreender os salários. Todavia, como veremos, trata-se de uma relação interna ao mecanismo de acumulação capitalista.
Assim – e para seguir em nosso exemplo –, o salário real não são os R$ 2.000 que o trabalhador recebe, mas o quantum de mercadorias que esse montante de dinheiro pode comprar. O salário real é o preço da força de trabalho expresso em outra coisa (mercadorias de consumo básico, necessárias à reprodução da vida do trabalhador e sua família). Disso resultam algumas possibilidades. Por exemplo, pode haver um “ganho real” – um aumento no salário real – sem que haja uma variação em sua forma nominal. Um salário de R$ 2.000 pode hoje valer mais do que ontem simplesmente pelo fato de as mercadorias necessárias à reprodução da força de trabalho tornarem-se mais baratas. Um salário de R$ 2.000 pode valer menos – passar por uma queda “real” – se as mercadorias básicas da vida do trabalhar tornarem-se mais caras.
Além disso, mesmo um aumento nominal pode significar uma queda real, se não acompanhar a subida no preço das mercadorias necessárias à reprodução do trabalhador e sua família. Caso o salário aumente de R$ 2.000 para R$ 2.200, teremos um crescimento de 10% em sua forma nominal. Todavia, se as mercadorias básicas da reprodução da força de trabalho, devido à inflação, subirem de R$ 2.000 para R$ 2.400, valerão 20% mais do que antes. O salário nominal, mesmo crescendo, terá afinal se manifestado em queda de R$ 200 (10%) no salário real.
Todos esses exemplos são bastante óbvios para qualquer pessoa. Não é necessário saber nada desses “conceitos” para se indignar com a queda dos salários reais.
2.3. O salário relativo
Outra coisa se passa com o salário relativo. Enquanto o salário real é percebido por todos e dá base a expressivas revoltas, o salário relativo é no geral incompreendido e suas variações são pouco notadas. Sobretudo, ele é desprezado pela burocracia sindical e também pela chamada “esquerda” socialista. Entretanto, a variação desse salário é a mais importante para o acúmulo do capital, para o controle da classe trabalhadora e para o movimento revolucionário.
O salário relativo retrata a classe trabalhadora como produtiva (o que corresponde à sua essência), não meramente como consumidora. Ele – como o próprio nome revela – é tão “relativo” quanto o salário real. Todavia, com ele são postos numa relação, frente à classe trabalhadora, não apenas as mercadorias necessárias ao seu consumo, mas sobretudo os burgueses enquanto classe social que se apropria da riqueza produzida. O salário relativo diz respeito à participação do trabalhador no produto-valor criado por ele mesmo, e, por isso, só é compreensível se se considera conjuntamente a jornada de trabalho (suas variações em dimensão e em intensidade). O salário relativo ultrapassa a mera reflexão sobre salário, apontando já para o problema da jornada. Marx indica que um programa revolucionário só pode ser concebido ao se tratar salário e jornada ao mesmo tempo. Mas, afinal, o que é o salário relativo?
No capítulo XV do livro primeiro de O capital, Marx trata do seguinte modo o salário relativo (após a longa citação, comentaremos o trecho, para facilitar a compreensão):
“Se o valor original da força de trabalho for 3 xelins e o tempo de trabalho necessário for de 6 horas; se a mais-valia também for 3 xelins e o mais-trabalho também de 6 horas, então uma duplicação da força produtiva do trabalho, com uma constante divisão da jornada de trabalho, deixaria o preço da força de trabalho [o salário] e a mais-valia inalterados. Cada um deles apenas se representaria no dobro de valores de uso, mas comparativamente mais baratos. Embora o preço da força de trabalho permanecesse inalterado, teria subido acima de seu valor. Se o preço da força de trabalho [salário] caísse, mas não para o limite mínimo de 1 e 1/2 xelins (dado pelo seu novo valor), e sim para 2 xelins e 10 pence, 2 xelins e 6 pence, essa queda do preço ainda representaria uma crescente massa de meios de subsistência. O preço da força de trabalho pode assim cair constantemente à medida que a força produtiva do trabalho aumenta, com um aumento simultâneo e contínuo da massa de meios de subsistência do trabalhador. Relativamente, porém – isto é, em comparação com a mais-valia –, o valor da força de trabalho cairia constantemente e, assim, a lacuna entre as condições de vida do trabalhador e do capitalista aumentaria.”[3]
Como se nota, o fundamental para compreender a noção de salário relativo é a consideração conjunta da produtividade do trabalho e da dimensão da jornada de trabalho. A rigor, a forma do salário relativo não é meramente referente a salário, mas à produção de valor (riqueza em forma capitalista).
Busquemos explicar um pouco mais o exemplo acima, para tentar facilitar sua compreensão, usando a moeda e a jornada padrões brasileiras. Suponhamos que nosso trabalhador que receba R$ 2.000 trabalhe 8h. Dessas 8h, suponhamos que metade (4h) corresponda ao tempo de trabalho necessário (à reprodução da força de trabalho) e metade (4h) ao tempo de trabalho excedente (que cria a mais-valia para o capitalista). Supondo que os R$ 2.000 correspondam propriamente ao valor da força de trabalho, o conjunto da jornada (8h) produzirá um quantum de valor idealmente expresso (como preço) em R$ 4.000. Caso haja uma duplicação geral da força produtiva do trabalho (por exemplo, pela introdução de máquinas mais avançadas), a jornada produzirá o dobro de valores de uso, se comparada ao que produzia antes. Se esse aumento da produtividade se generalizar em todos os ramos – como tende a ocorrer no longo prazo, sob o capitalismo –, afetará os produtos necessários à reprodução da força de trabalho. Logo, o valor desta cairá, o que permitirá a diminuição no salário. Assim, o valor da força de trabalho poderá cair pela metade. Em vez de R$ 2.000, o preço da força de trabalho [salário] poderá ser de R$ 1.000. Do ponto de vista imediato do trabalhador (frente a seus meios de consumo), um novo salário de R$ 1.000 manteria sua mesma condição de vida anterior, no que se refere a meios de consumo (claro, caso o aumento da produtividade não seja acompanhado de uma elevação na intensidade do trabalho).
Todavia, suponhamos que o preço da força de trabalho (o salário) não baixe até seu valor, por diversos motivos. Em vez de descer a R$ 1.000, ele estacionará, por exemplo, em R$ 1.500. Na prática, apesar da queda nominal, o trabalhador terá um aumento real. Entretanto – e é aqui que entra o elemento mais importante para a compreensão do salário relativo –, esses R$ 1.500 significarão que a parte do trabalhador no produto-valor total diminuirá em R$ 500. Antes, como vimos, do total de R$ 4.000, metade (50%) atuava na reprodução da força de trabalho e metade se expressava em mais-valia. Agora, com a nova força produtiva, pouco mais de um terço da jornada (37,5%) é necessário para a produção de valor equivalente à reprodução da força de trabalho. A parte do capital cresceu de 50% para 62,5%. Ou seja, apesar do aumento no salário real, há uma queda relativa da participação do trabalhador na riqueza social produzida por ele mesmo. Eis por que Marx, ao final da citação acima, diz que “a lacuna entre as condições de vida do trabalhador e do capitalista aumenta”.
Usemos um exemplo simbólico/imagético de Marx, bastante conhecido, tendo em vista ilustrar o que queremos expressar. Em Trabalho Assalariado e Capital (publicado em 1849), Marx trata do salário relativo na seguinte maneira:
“Uma casa pode ser grande ou pequena. Se as casas vizinhas também são pequenas, ela satisfaz todas as demandas sociais de um apartamento. Mas se um palácio se ergue ao lado da casinha, então ela se reduz a uma cabana. A casinha agora prova que seu dono tem pouca ou nenhuma reivindicação a fazer. E, por mais que ela cresça no decorrer da civilização, se o palácio vizinho crescer na mesma proporção ou mais, o habitante da casa relativamente pequena se sentirá cada vez mais desconfortável, insatisfeito, mais deprimido em suas quatro paredes.”[4]
Como se vê, Marx compreende claramente a possibilidade de melhora – no quesito ampliação de consumo (salário real) – na condição de vida de determinados setores da classe trabalhadora. Isso, entretanto, não significa uma melhora em sua condição social sob o capitalismo, pois o operário produz a cada dia uma força social (o capital) que o acorrenta mais fortemente. O salário relativo tende sempre a se reduzir. Assim como há uma tendência histórica de queda da taxa de lucro (tema que não nos interessa aqui), há também uma tendência histórica de queda nos salários relativos[5].
Em outro importante texto, Salário, Preço e Lucro (de 1865), Marx expressa claramente as mesmas noções referentes a salário real e salário relativo (ver, particularmente, o item XIII, “Casos principais de luta pelo aumento de salários e contra a sua redução”). Trazemos essa informação simplesmente para destacar que se trata de uma série de conferências dadas à direção da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), depois conhecida como Primeira Internacional. Ou seja: Marx está aí se esforçando – como a rigor ocorre em toda a sua produção teórica, muito embora às vezes não se perceba – para educar a vanguarda da classe trabalhadora a respeito das suas reivindicações. De que adiantaria reivindicar algo que não resolve de fato os problemas da classe trabalhadora sob o capitalismo? De que adiantaria ter reivindicações que não contradizem necessariamente o sistema e podem até ser integradas como mecanismo do mesmo?
Após expor questões referentes aos ciclos econômicos e à regulação dos salários pela superpopulação relativa (o que à frente comentaremos um pouco), Marx termina suas conferências no Conselho Geral da AIT em clara crítica às reivindicações usuais por aumento “real” de salários:
“a classe trabalhadora não deve superestimar a eficácia final dessas lutas do dia a dia [pela elevação do salário real]. Mas não deve esquecer que está lutando contra os efeitos, não contra as causas desses efeitos; que embora retarde o movimento descendente, não muda sua direção; que ela usa agentes paliativos que não curam a doença. Ela por isso não deve [sollte daher nicht] ser absorvida exclusivamente por essa guerra de guerrilha inevitável, que surge incessantemente dos atos de violência sem fim do capital ou das flutuações do mercado. Ela deve compreender que o sistema atual, com todas as misérias que inflige a ela, está ao mesmo tempo prenhe das condições materiais e das formas sociais necessárias para uma transformação econômica da sociedade. Em vez [Statt] do lema conservador: ‘Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!’, ela deve inscrever em sua bandeira o slogan revolucionário: ‘Abaixo o sistema salarial!'”[6]
E Marx reforça, poucas linhas abaixo (com o que conclui o texto):
“Os sindicatos servem bem como pontos de resistência contra a violência do capital. Mas falham parcialmente assim que fazem uso impróprio de seu poder. Eles fracassam completamente em seu objetivo [verfehlen ihren Zweck gänzlich] assim que se limitam a travar uma guerra de guerrilha contra os efeitos do sistema existente, em vez de simultaneamente tentar mudá-lo, em vez de usar suas forças organizadas como uma alavanca para a possível libertação da classe trabalhadora, isto é, a abolição final do sistema do trabalho assalariado.”[7]
Como se vê, Marx não nega a importância que podem ter as lutas pela manutenção ou elevação do salário real. Entretanto, deixa bastante claro que essas lutas não mudam a “direção geral”, ou seja, o aumento da acumulação do capital. Tais lutas são, no máximo, paliativos, e a classe trabalhadora não deveria ser absorvida apenas por ela, pois se o fizer não conseguirá se emancipar. Para ultrapassar tal limite, para compreender que o sistema atual está prenhe das condições materiais da emancipação, a classe trabalhadora deveria substituir – Marx usa “em vez de” [Statt] – a luta pela elevação do salário real pela abolição da forma do trabalho assalariado.
Marx, curiosamente, chama a expressão “salário justo para uma jornada de trabalho justa” de “lema conservador” [konservativen Mottos] (o que, aliás, ele destaca em itálico). Ora, o que é o “salário justo”? Tradicionalmente, “salário justo” é o pagamento da força de trabalho pelo seu valor. Em nosso país, por exemplo, o “salário justo” seria mais ou menos aquele sugerido pelo DIEESE (cerca de R$ 5.600, no momento em que escrevemos este texto). Na medida em que lutam por isso, diz Marx, os sindicatos “fracassam completamente em seu objetivo”. Substitui-se assim uma luta revolucionária – “abolição final do sistema do trabalho assalariado” – por uma luta conservadora (ou seja, que conserva o sistema econômico capitalista).
Somente uma luta contra a diminuição do salário relativo poderia efetivamente se contrapor às leis de acumulação do capitalismo, e, por isso mesmo, se tornar uma luta contra o assalariamento (existência da mercadoria força de trabalho). Isso é reafirmado também por Rosa Luxemburgo:
“[…] a luta contra a diminuição do salário relativo conduz à luta contra a existência da força de trabalho na condição de mercadoria, ou seja, contra a produção capitalista em seu conjunto. A luta contra a queda do salário relativo já não é uma luta que se desenvolve no terreno da economia mercantil, mas sim um assalto revolucionário, subversivo, contra a existência dessa economia. É o movimento socialista do proletariado.”[8]
Começamos a ter aqui indícios de um caminho para uma luta revolucionária a partir dos sindicatos. Ao menos, sabemos que a luta tradicional do movimento sindical – inclusive todo o programa da “esquerda socialista” – é considerada por Marx uma luta conservadora (que conserva o capitalismo).
Todavia, cremos que mais um elemento deve ser inserido em nossa análise, tendo em vista definir corretamente uma política revolucionária para o movimento do proletariado.
3. O papel da superpopulação relativa na regulação dos salários e a lei geral da acumulação capitalista
Não nos cabe aqui analisar em todo o detalhe necessário o que Marx chama de “superpopulação relativa” (às vezes denominada Exército Industrial de Reserva, às vezes apresentada como uma noção um pouco mais ampla, que abarca tal “exército”). Tal superpopulação – ensina Marx no capítulo XXIII do livro primeiro de O capital – é sobrante ou abundante em relação às necessidades de acumulação capitalista. Sobretudo graças ao progresso técnico-científico – cujo impulso é a busca pela mais-valia em sua forma relativa –, forma-se aos poucos, historicamente, uma população sobrante, subutilizada pelo capital, que se espalha por diversas franjas ou camadas. Tal população é, portanto, acima de tudo, resultado histórico do próprio processo de substituição relativa de trabalhadores por máquinas. Trata-se de excedente populacional sempre pronto para ser utilizado pelo capital, permanentemente à sua disposição. Caso tal excedente não existisse, haveria paralisação da ampliação da escala de acumulação; a economia capitalista entraria em crise pela simples impossibilidade de funcionamento dos circuitos normais dos capitais[9]. Contra as teorias populacionais a-históricas e reacionárias (como a malthusiana), Marx esclarece que a teoria populacional própria do modo de produção capitalista consiste em 1) a classe trabalhadora criar a acumulação e, no mesmo processo, os meios de sua própria redundância; 2) a existência e a dimensão da superpopulação estarem submetidas às necessidades da acumulação capitalista. A superpopulação relativa, diz Marx, é “uma alavanca da acumulação capitalista, na verdade uma condição de existência do modo de produção capitalista”[10].
Nosso autor aponta que as oscilações do salário não têm qualquer independência frente ao movimento geral da acumulação. Diz ele:
“São esses movimentos absolutos na acumulação de capital que se refletem como movimentos relativos na massa da força de trabalho explorável e, portanto, parecem ser devidos ao próprio movimento desta. Para usar uma expressão matemática: o tamanho da acumulação é a variável independente, o tamanho do salário a dependente, e não o contrário.”[11]
O verdadeiro responsável pela regulação dos salários não são os sindicatos e seus “ganhos reais”, mas o movimento de absorção e repulsão da superpopulação relativa no mercado de trabalho, de acordo com cada fase do ciclo econômico. Nos momentos de ascenso do ciclo econômico, parte significativa da superpopulação relativa (sobretudo sua primeira camada, chamada por Marx de “líquida” ou “fluida”, a qual no IBGE conforma o índice oficial de desemprego) é absorvida no mercado de trabalho. A diminuição de tal camada leva ao aumento do preço da força de trabalho (salário) empregada pelo capital, como ocorre com qualquer mercadoria submetida à oferta e à demanda. Ocorrem por isso ganhos salariais reais (concomitantes à acumulação de capital). Mas tudo isso até o momento que esses próprios aumentos atrapalham a acumulação capitalista. Marx sintetiza da seguinte forma:
“seu aumento [dos salários reais] significa, na melhor das hipóteses, apenas uma diminuição quantitativa do trabalho não pago que o trabalhador tem de realizar. Esse declínio nunca continua a ponto de ameaçar o próprio sistema.”[12]
Queremos destacar que Marx considera que o aumento real dos salários, na melhor das hipóteses, diminui a acumulação capitalista, mas nunca ameaça propriamente o sistema. Além disso, nessa mesma página Marx fala que, “apesar dos conflitos violentos sobre a taxa de salários, […] Adam Smith já demostrou que em geral o patrão sempre permanece o patrão em tal conflito […]”. O próprio Adam Smith já teria compreendido as deficiências do aumento “real” de salário.
Pouco à frente, Marx reafirma todas essas concepções críticas:
“Se a quantidade de trabalho não pago fornecido pela classe trabalhadora e acumulado pela classe capitalista cresce rápido o suficiente […], então os salários aumentam, e, tudo o mais constante, o trabalho não pago diminui proporcionalmente. Mas assim que essa diminuição atinge o ponto em que o excedente de trabalho que alimenta o capital não é mais oferecido em quantidades normais, ocorre uma reação: uma parte menor da receita é capitalizada, a acumulação paralisa e o movimento salarial em alta recebe um contragolpe. O aumento do preço do trabalho permanece, portanto, restrito a limites que não apenas deixam as bases do sistema capitalista intocadas, mas também garantem sua reprodução em uma escala crescente.”[13]
Como se vê, os aumentos reais de salários, ainda que possam em determinado momento e em determinadas condições diminuir a acumulação capitalista, deixam “as bases do sistema intocadas” e garantem sempre, no final das contas – isto é, a despeito dos momentos de crise –, uma “reprodução em escala crescente”. Na realidade, os “ganhos reais” do movimento sindical usual são parte integrante do mecanismo de acumulação capitalista. Marx sintetiza assim: “No grosso modo, os movimentos gerais dos salários são regulados exclusivamente [ausschließlich] pela expansão e contração do exército industrial de reserva, que correspondem à mudança de período do ciclo industrial”[14]. Nosso autor destaca que a existência da superpopulação relativa quebra as pretensões revolucionárias do proletariado empregado: “O exército industrial de reserva exerce pressão sobre o exército operário ativo durante os períodos de estagnação e prosperidade média, e contém suas reivindicações durante os períodos de superprodução e paroxismo”[15]. É por isso que Marx afirma tantas vezes nesse capítulo que a dimensão do salário pouco ou nada importa na hora de impedir a acumulação capitalista e a exploração crescente da classe trabalhadora. Por exemplo, num momento em que sintetiza a lei geral da acumulação capitalista, afirma:
“[…] à medida que o capital se acumula, a condição do trabalhador, qualquer que seja seu pagamento, alto ou baixo [welches immer seine Zahlung, hoch oder niedrig], deve se deteriorar. Finalmente, a lei, que sempre mantém a superpopulação relativa ou exército industrial de reserva em equilíbrio com o volume e a energia da acumulação, prende o trabalhador mais firmemente ao capital do que as correntes de Hefaísto prenderam Prometeu ao rochedo. Requer uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital.”[16]
4. A questão que abrimos à discussão no Comitê de Enlace
Como pode-se ver nestas páginas apresentadas em forma um tanto sucinta – tendo em vista não tomar demais o tempo dos companheiros –, Marx critica praticamente tudo o que conforma ainda hoje o programa sindical da “esquerda”, e mesmo da “esquerda revolucionária”. Não há uma organização política de esquerda que não esteja completamente subsumida, nos sindicatos em que atua, à defesa do mero “aumento real”. Para tal “esquerda”, o que a diferenciaria da burocracia sindical tradicional seria sua “radicalidade” ou supostamente seus métodos “democráticos”. Ao passo que a burocracia sindical abertamente vendida ao Estado não obteria aumentos salariais reais, ou obteria aumentos salariais reais limitados, a nossa “esquerda socialista”, supostamente, realizaria greves mais radicais, mais “selvagens”, e obteria aumentos mais significativos. Não se nota com isso que se trata de “radicalização” dentro do mesmo eixo, na mesma peça componente da engrenagem da acumulação capitalista. Não se nota que o próprio Adam Smith, segundo Marx, já teria demonstrado que mesmo nos “conflitos violentos” o patrão segue sempre sendo patrão. O que caberia desenvolver não seria a radicalização dentro do mesmo eixo, mas a mudança no eixo das reivindicações. Caberia sair da mera compreensão de defesa do salário real e caminhar para a defesa do salário relativo. Em vez de reivindicações que permitem a conciliação entre as classes – pois o aumento do salário real não contradiz a acumulação –, caberia buscar as reivindicações que contradizem tal acumulação; que colocam o conflito entre classe trabalhadora e classe capitalista propriamente como uma luta inconciliável. Cabe buscar o “movimento socialista do proletariado”, como defendeu Rosa Luxemburgo.
Nesse sentido, fizemos aqui um esforço de determinação meramente “negativo”, no sentido de afastar o que é equivocado. Buscamos mostrar que a defesa do salário real, por maior que seja sua importância, não basta para criar contradições na sociedade capitalista. Para além dele, seria preciso defender os salários relativos, que têm como pressuposto o caráter propriamente produtivo (e não meramente consumidor) da classe trabalhadora e tendem à abolição da forma salário. Por fim, deve-se considerar, do nosso ponto de vista, também a existência de uma superpopulação relativa (um enorme setor social desempregado e subempregado), peça fundamental da acumulação capitalista, que mina todas as pretensões reivindicatórias e revolucionárias do proletariado. Sem encontrar uma forma de paralisar a pressão dos inativos sobre os ativos, toda reivindicação – mesmo a defesa dos salários relativos – é impossibilitada.
A TS tem algumas propostas de reivindicações voltadas a atuar sobre todos esses problemas, particularmente na manutenção do salário relativo e na paralisação da pressão da superpopulação relativa. Muitos companheiros conhecem nosso programa. Não queremos escondê-lo (os interessados podem ler nossa interpretação do Programa de Transição aqui), mas também não queremos apresentar nosso programa em sua forma completa neste momento inicial do debate, pois não consideramos esse programa inscrito na pedra. Se, a partir dos problemas acima – apresentados pelo próprio Marx – conseguirmos chegar conjuntamente num programa superior, mais determinado para o presente, tanto melhor para todos nós. Gostaríamos portanto de abrir o debate neste eixo de discussão a partir dos seguintes problemas: quais reivindicações o movimento proletário, a começar pelos seus sindicatos, deveria erguer, tendo em vista se contrapor claramente ao capitalismo (sem permitir conciliações)? Quais as posições dos demais companheiros, organizações, grupos e indivíduos, frente às reivindicações sindicais tradicionais da chamada “esquerda”?
A nosso ver, a mera defesa por Marx de “abolição da forma salário” – por mais correta que seja como norte geral – é muito abstrata para ser defendida pelo conjunto da classe trabalhadora. É preciso encontrar uma forma de expressar mais concretamente essa ideia, em reivindicações que parecem mínimas, simples, imediatas e necessárias ao trabalhador. Como fazê-lo?
[1] MARX, K., Das Kapital [O capital]. Início do capítulo XVIII (“O salário por tempo”). In MEGA2, II.10, Berlim: Dietz, 1991, p. 486.
[2] Idem, ibidem, p. 486.
[3] Idem, ibidem, capítulo XV, p. 469. Itálico nosso.
[4] MARX, K., “Lohnarbeit und Kapital” [Trabalho assalariado e capital]. In MEW, vol. 6, Berlim: Dietz, 1961, p. 411. Citado também por ROSDOLSKY, R., Gênese e Estrutura de O capital de Marx. Rio de Janeiro: EDUERJ / Contraponto, 2011, apêndice à parte III.
[5] A expressão “lei da queda tendencial dos salários relativos” foi, segundo R. Rosdolsky, registrada pioneiramente por Rosa Luxemburgo. Ver idem, ibidem, p. 246.
[6] MARX, K., “Lohn, Preis und Profit” [Salário, preço e lucro]. In MEW, vol. 16, Berlim: Dietz, 1962, p. 152. O negrito é nosso.
[7] Idem, ibidem, p. 152.
[8] LUXEMBURGO, R., Ausgewählte Reden und Schriften. Vol. I, Berlim, 1951, p. 717 e pp. 719-720, apud ROSDOLSKY, R., Gênese e Estrutura…, op. cit., p. 247.
[9] O circuito geral do capital, ensina Marx na terceira seção do livro primeiro de O capital, é D – M (FT e MP) … P … M’ – D’ (em que D é dinheiro; M é mercadoria; FT é força de trabalho; MP são os meios de produção; P é a esfera da produção; M’ é a mercadoria com mais-valia; D’ é o novo valor em dinheiro, acrescido pela mais-valia). No caso apontado acima, caso não houvesse uma superpopulação relativa (ou não houvesse em dimensão suficiente), ocorreria uma paralisação logo na primeira transformação de dinheiro nas mercadorias necessárias à produção (D – M).
[10] MARX, K., Das Kapital [O capital], op. cit., p. 567.
[11] Idem, ibidem,p. 556.
[12] Idem, ibidem,p. 555. Negrito nosso.
[13] Idem, ibidem, pp. 556-57. Itálico nosso.
[14] Idem, ibidem, p. 572.
[15] Idem, ibidem, p. 574.
[16] Idem, ibidem, p. 580. Itálico nosso. Também na Crítica ao Programa de Gotha (1875), como lembra Rosdolsky, Marx expressa-se em forma similar, ao tratar do sistema assalariado como “um sistema de escravidão, uma escravidão que se torna mais dura na medida em que se desenvolvem as forças produtivas sociais do trabalho, sem que tenha importância se o trabalhador recebe pagamento melhor ou pior“. Cf. MARX, K., “Kritik des Gothaer Programms” [Crítica do programa de Gotha]. In MEW, vol. 19, Berlim: Dietz, 1987, p. 26. Itálico nosso.