Comitê de Enlace

Apoio a “Sobre a crítica de Marx aos ‘ganhos reais’ sindicais” [CI]

Introdução

O grupo Comitê Intercidades (CI), criado para compor o Comitê de Enlace, escreve este texto para contribuir com o debate sobre o eixo número dois, intitulado “Qual a possibilidade de obter melhorias por meio de conquistas sindicais”, em apoio ao texto já publicado pela organização Transição Socialista (TS), sob o título “Sobre a crítica de Marx aos ‘ganhos reais’ sindicais”.

Em concordância e reforço da análise proposta no texto da TS, o CI avalia que os programas políticos da maior parte dos sindicatos e da chamada “esquerda socialista” centraram-se em um eixo conservador, ou seja, pressupõe a continuidade da exploração capitalista.

Nas últimas décadas, esses programas políticos reformistas (ou ainda, a ausência de qualquer programa político à altura dos interesses da classe trabalhadora) têm se mostrado fracassados. O capital segue pressuposto e afirmado, deixando atrás de si um rastro de destruição. Isso se confirma no presente, pelos impactos devastadores da atual crise econômica sobre as condições de vida da classe trabalhadora. A crise econômica inaugurou um período de agravamento da miséria, do desemprego e do subemprego, que joga, a cada dia, milhares de trabalhadores às margens da sociedade. Essa crise também tem elevado o grau de insatisfação, de revolta social, e de inúmeros estados de ingovernabilidade em todo o planeta.

Ao mesmo tempo, essa crise capitalista abre brechas históricas que trazem à tona a reflexão, o debate e a necessidade de reorganização da luta dos trabalhadores pela superação da irracionalidade do modo de produção capitalista.

No entanto, sem um programa político à altura dessas possibilidades que se abrem; que seja capaz de unificar a classe trabalhadora mundial; que permita arregaçar, como através de marteladas em uma cunha, as brechas das contradições do capital; que organize os trabalhadores  para enfrentar a ofensiva avassaladora do capital; sem um programa político que afirme a necessidade e a possibilidade histórica da revolução socialista, a classe trabalhadora continuará presa aos grilhões da exploração, do roubo capitalista, acobertados pela burocracia parasitária dos sindicatos e da “esquerda socialista”.

Essas atuais condições históricas, pensamos, não são essencialmente distintas daquelas apresentadas por Trotsky, em 1938, nas duas primeiras partes do  Programa de Transição:

A economia, o Estado, a política da burguesia e suas relações internacionais estão completamente afetados pela crise social que caracteriza a situação pré-revolucionária da sociedade. O principal obstáculo no caminho da transformação da situação pré-revolucionária em revolucionária é o caráter oportunista da direção do proletariado, sua covardia pequeno-burguesa diante da grande burguesia e os laços traidores que mantém com esta, mesmo em sua agonia. (Trotsky. Programa de Transição. Trad. Ana Beatriz da Costa Moreira. São Paulo: Týkhe, 2009 p. 31)

Comentários sobre o texto da TS “Sobre a crítica de Marx aos ‘Ganhos Reais’ sindicais”.

O texto proposto pela Transição Socialista é correto em sua análise e fundamentação teórica a respeito do problema das reivindicações usuais sobre os salários, pautadas atualmente pelos sindicatos e pela chamada “esquerda socialista”.

A análise crítica contida no texto contribui para compreensão dos limites dos sindicatos e da “esquerda socialista”, com seus programas políticos que possuem aparência de luta em favor dos interesses da classe trabalhadora. No entanto, esses programas políticos servem verdadeiramente aos interesses da classe dominante, pois, apesar de resultarem em eventuais ganhos de salário nominal e real, por outro lado, eles pressupõem a continuidade da acumulação e exploração capitalista.

A crítica não consiste em proposta do abandono da luta no nível sindical, mas sim a de destacar a importância dessa forma de organização dos trabalhadores, mas, necessariamente, a partir de um programa político com estratégia revolucionária, que atenda às reivindicações mínimas reais, mais imediatamente sentidas pela classe trabalhadora e, ao mesmo tempo, desvele as contradições do capital e organize os trabalhadores em uma luta revolucionária. Como afirmou Trotsky, no Programa de Transição:

Na luta pelas reinvindicações parciais e transitórias, os operários precisam, hoje mais do que nunca, de organizações de massas, antes de tudo de sindicatos. […] Os bolchevique-leninistas encontraram-se na linha de frente de todas as formas de luta, mesmo naquelas onde apenas se trata dos interesses materiais ou dos direitos democráticos mais modestos da classe operária. Tomam parte ativa na vida dos sindicatos de massa, preocupando-se em reforçá-los e em aumentar seu espírito de combate. […] Somente tendo por base esse trabalho é possível lutar com sucesso no interior dos sindicatos contra a burocracia reformista e, em particular, contra a burocracia stalinista. (Trotsky. Programa de Transição. Trad. Ana Beatriz da Costa Moreira. São Paulo: Týkhe, 2009 p. 31)

Mais à frente no texto do Programa, Trotsky reforça escrevendo que:             

A Quarta Internacional não rejeita as reivindicações do velho programa mínimo, à medida em que elas conservam parte de sua força vital. Defende incansavelmente os direitos democráticos dos operários e suas conquistas sociais. Mas conduz este trabalho diário ao quadro de uma perspectiva correta, real, ou seja, revolucionária. À medida que as velhas reivindicações parciais ‘mínimas’ das massas se chocam com as tendências destrutivas e degradantes do capitalismo decadente – e isto ocorre a cada passo -, a Quarta Internacional avança um sistema de reivindicações transitórias, cujo sentido consiste em dirigir-se, cada vez mais aberta e resolutamente, contra as próprias bases do regime burguês. O velho programa ‘mínimo’ é constantemente ultrapassado pelo programa de transição, cuja tarefa consiste numa mobilização sistemática das massas em direção à revolução proletária. (Trotsky. Programa de Transição. Trad. Ana Beatriz da Costa Moreira. São Paulo: Týkhe, 2009 p. 34)

Em resposta à questão levantada pela TS, sobre quais reivindicações o movimento proletário, a começar pelos seus sindicatos, deveria erguer, tendo em vista se contrapor claramente ao capitalismo (sem permitir conciliações)? O CI compreende que essas reivindicações já estão escritas nas páginas da experiência histórica comunista, trata-se das escalas móveis de horas de trabalho e de salário contidas no Programa de Transição da IV Internacional Comunista.

O Programa de Transição como alternativa revolucionária às reivindicações usuais reformistas dos sindicatos

As reivindicações usuais dos sindicatos sobre os ganhos reais de salário, são na prática, já bem caracterizadas pelo texto proposto pela TS, muito limitadas e não representam mais que reivindicações mínimas, que pressupõem a continuidade da exploração capitalista. Não significam para a classe trabalhadora nenhuma perspectiva futura de uma nova sociedade para além desta, do presente, que muito pouco ou nada tem a lhes oferecer.

Tampouco seria o caminho alternativo propor que as reivindicações usuais mínimas sejam apenas radicalizadas, transformando-se em reivindicações máximas, como por exemplo a forma abolição da forma salário. Essa via é dogmática e se tornaria abstrata e incapaz de atingir e organizar a luta dos trabalhadores em seu nível de consciência. Hector Benoit, em artigo em que reflete sobre o Programa de Transição, sintetiza bem essa questão fundamental:

[…] a questão estratégica, do ponto de vista marxista, é exatamente a seguinte: como fazer a transição para um poder revolucionário do proletariado mundial? Ou então, como, a partir das condições atuais, permitir que as contradições objetivas se desenvolvam e levem o proletariado mundial ao poder. Ou ainda, como lançar a ponte transitória do exato dia de hoje ao dia do poder planetário do proletariado, o poder da auto-organização proletária, o Estado dos conselhos, ao menos nos países dominantes do mundo? (H. Benoit.  Reflexões Sobre o esquecimento do Programa. Publicado conjuntamente com edição do Programa de Transição de Leon Trotsky. Trad. Ana Beatriz da Costa Moreira. São Paulo: Týkhe, 2009 p. 26).

No mesmo sentido Trotsky escreveu:

A tarefa estratégica do próximo período – período pré-revolucionário de agitação, propaganda e organização – consiste em superar a contradição entre a maturidade das condições objetivas da revolução e a imaturidade do proletariado e de sua vanguarda (confusão e desilusão da velha geração, inexperiência da nova). É preciso ajudar as massas no processo de suas lutas cotidianas a encontrar a ponte entre suas reivindicações atuais e o programa da revolução socialista. Essa ponte deve consistir em um sistema de reivindicações transitórias que parta das atuais condições e consciências de amplas camadas da classe trabalhadora e conduza, invariavelmente, a uma só e mesma conclusão: a conquista do poder pelo proletariado. (Trotsky. Programa de Transição. Trad. Ana Beatriz da Costa Moreira. São Paulo: Týkhe, 2009 p. 31)

Um grupo, movimento ou partido não pode aventurar-se na tarefa de criar um novo programa de reivindicações que supere esse dualismo grosseiro entre o mínimo e o máximo. Isso por dois motivos: as condições objetivas para a revolução, em sua essência, são as mesmas que as expostas por Trotsky em 1938, data da redação do Programa de Transição. Em segundo, as condições subjetivas não se desenvolveram para além das condições subjetivas da classe trabalhadora e seus dirigentes, dadas com a experiência da Revolução Russa de 1917 e da contrarrevolução stalinista. Talvez hoje essas condições subjetivas estejam até mesmo aquém daquelas do passado, devido ao avanço a passos largos da crise da direção do proletariado, imersa em um pântano burocrático, de abandono e traição dos interesses da classe trabalhadora. Isso é expresso na maior parte das estratégias e táticas da “esquerda socialista” e dos sindicatos por ela dirigida.

De forma alguma isso é uma defesa dogmática, ortodoxa, religiosa do Programa de Transição. Como corretamente afirma a organização Transição Socialista, em seu texto Sobre a crítica de Marx aos ‘Ganhos Reais’ sindicais, o Programa de Transição não está completo e inscrito em pedra. Conforme também afirma o próprio Trotsky em 1938, na ocasião da fundação da Quarta Internacional, em uma discussão com os membros do Socialist Workers Party – SWP a respeito do Programa. Trotsky utilizava o pseudônimo de “Crux”:

Crux – É uma questão muito importante. Este programa não é a invenção de um homem. É o resultado da longa experiência dos bolcheviques. Eu repito: este programa é a concretização da experiência coletiva dos revolucionários. É a aplicação dos velhos princípios à situação atual. Ele não deve ser considerado como definitivamente gravado no mármore, mas como adaptável à situação objetiva. (Discussão dos Membros do SWP com Crux (Trotsky) sobre o Programa de Transição. Publicado conjuntamente com L. Trotsky. Programa de Transição. Trad. Renata Carla de Souza Atilanno. São Paulo: Týkhe, 2009 p. 87).

A proposta é outra, a de levantar uma questão de fundamental importância para a organização da luta revolucionária, que é o resgate do Programa de Transição do esquecimento e sua aplicação prática, adaptado às condições objetivas atuais. Como escreve Hector Benoit:

Trata-se hoje, no século XXI, realmente, de pensar um novo programa marxista ou, talvez, ao contrário, não seria necessário, muito mais, refletir sobre o ESQUECIMENTO do antigo programa [o Programa revolucionário contido em O Capital, que embasou Trotsky na redação do Programa de Transição]? Os gregos nos ensinaram que verdade é não-esquecimento (alétheia). O primeiro “a” é uma letra privativa que diante do restante da palavra (létheia) constrói exatamente a noção de “não-esquecimento”. Mas, hoje, esquecemos, esquecemos e esquecemos. (Benoit H. Op. cit. p. 11)

Páginas adiante, Benoit reitera:

Portanto, consideramos que, do ponto de vista da estratégia revolucionária mais ampla do proletariado para o próximo século, antes de tudo, devemos não esquecer o programa transitório marxista exposto em O Capital, esquecido, redescoberto e relembrado diversas vezes na história destes últimos 150 anos. Ao invés de inventar um novo programa, não devemos esquecer o programa e também a longa história desse programa transitório, a história da sua gênese e do seu esquecimento. Pensamos que se trata hoje de compreender e meditar humildemente: pouco há de novo a inventar ou a criar, mas sim, sendo marxistas, devemos partir das contradições objetivas do capitalismo mundial, do automovimento do proletariado mundial, não querendo ditar-lhe regras, não querendo iluminá-lo com pseudo-lições ideológicas, não querendo criar programas imaginários de governos futuros, mas sim, muito mais, aprendendo com a imanência do movimento e com a história do próprio movimento revolucionário, devemos compreender, de uma vez por todas, o que significa um programa de transição, uma estratégia de transição para um novo século não-capitalista. (H. Benoit. Op. cit. p. 27)

As reivindicações do Programa de Transição da IV Internacional ainda permanecem vivas e válidas como alternativa às reivindicações reformistas da burocracia sindical. As escalas móveis de salário e de horas de trabalho são as únicas que, ao ser aplicadas de modo combinado e de forma intransigente, podem organizar os trabalhadores a partir das reivindicações mais aparentes, aquelas imediatamente sentidas pela classe com o desemprego e rebaixamento dos salários, não se limitando meramente a estas. Sobre isso Trotsky afirma ao SWP:

Os revolucionários sempre consideram as reformas e as conquistas como sub-produtos da luta revolucionária. Se nos contentarmos em reivindicar apenas aquilo que podemos obter, a classe dominante nos dará apenas uma décima parte ou nada daquilo. Se nós reivindicarmos mais e formos capazes de impor nossas reivindicações, os capitalistas serão obrigados a conceder o máximo. Quanto mais os trabalhadores forem combativos e exigentes, mais poderão exigir e obter. Nossas reivindicações não são slogans estéreis, são meios de pressão sobre a burguesia. No passado, durante o período áureo do capitalismo americano, os trabalhadores obtinham vantagens pelo simples fato de se lançarem empiricamente na luta, com um espírito bastante militante. A situação atual é muito diferente. Os capitalistas não têm uma era de prosperidade aberta à sua frente. Eles não têm medo das greves, dado o número de trabalhadores que esperam por um emprego. É por isso que o programa deve tentar unir as duas partes da classe operária, os trabalhadores e os desempregados. É o que faz precisamente a escala móvel de salários e de horas de trabalho. (Trotsky. Op. cit.  p 94).

As reivindicações das escalas móveis desvelam, trazem à superfície, em um movimento dialético, as contradições objetivas mais ocultas da exploração capitalista, possibilitando assim ao proletariado dar passos à frente em sua consciência e na sua organização da luta revolucionária. Isso significa a passagem de uma reivindicação mínima, sobre os ganhos reais, onde os trabalhadores são compreendidos apenas como consumidores, na esfera da circulação de mercadorias, para a esfera da produção de mercadorias, na qual os trabalhadores são os produtores de toda a riqueza. É nessa passagem da circulação para a produção que se desvela então a forma do salário relativo.

A “possibilidade” ou “impossibilidade” de realizar tais reivindicações é, no caso presente, uma questão de relação de forças que só pode ser resolvida na luta. Sobre a base dessa luta, quaisquer que sejam seus sucessos práticos imediatos, os operários compreenderão melhor toda a necessidade de liquidar a escravidão capitalista. (Trotsky. Op. Cit. p. 36)