Comitê de Enlace

Marx e a insuficiência da diminuição da jornada de trabalho sob o capitalismo [TS]

Texto para discussão no eixo “2. Qual a possibilidade de obter melhorias por meio de conquistas sindicais?”

Por R. Padial (Transição Socialista)

1. Introdução da questão

Este é o segundo texto que pretendemos desenvolver sobre o tema das reivindicações necessárias à classe trabalhadora na luta pela superação do capitalismo. O primeiro texto, com a crítica de Marx aos ganhos salariais “reais”, pode ser lido aqui.

Assim como no primeiro texto, o propósito deste está expresso no documento inicial de conformação do Comitê de Enlace, escrito pela TS. Lá anotamos o seguinte (desculpem-nos a repetição): “Marx demonstrou que a burguesia pode sim, muito bem, em determinadas condições, aumentar salários e diminuir jornadas sem afetar o grau de exploração da classe trabalhadora pelo capital. Esse grau pode até ser aumentado em tais condições”. Aqui buscaremos tratar do segundo elemento (a manutenção ou o aumento da exploração sob uma jornada diminuída).

Do nosso ponto de vista, em grande medida a burocracia sindical (inclusive a autodenominada “socialista”) sustenta-se nesse espaço aparentemente “vazio”, nesse hiato de possível conciliação (na situação em que salários podem crescer ou a jornada diminuir sem que haja queda no grau de exploração do trabalhador pelo capital). Nosso propósito com este texto – como também com o anterior – é destacar que o comunismo vive na compreensão do caráter inconciliável dos interesses entre a classe trabalhadora e a classe capitalista[1]. Tendo isso em vista, buscamos encontrar – no diálogo com os demais companheiros – reivindicações que se adequem a essa compreensão da “inconciliabilidade”. Elas existiriam?

2. A importância histórica da luta pela redução da jornada de trabalho

Ainda que pretendamos apontar insuficiências da luta pela diminuição da jornada de trabalho, não desprezamos a luta histórica da classe trabalhadora por esse propósito. Para não sermos mal entendidos, faremos uma pequena recuperação da análise de Marx sobre a luta dos trabalhadores pela limitação e diminuição da jornada de trabalho.

Nos itens cinco e seis do capítulo VIII do livro primeiro de O capital, Marx nos narra duas tendências históricas opostas sobre a jornada de trabalho (correspondentes a dois períodos diferentes do capitalismo).

A primeira tendência ocorre nos primórdios do capitalismo. Ela se inicia no final do século XIV e se estende até meados do XVIII. Nesse primeiro momento, o Estado intervém para ampliar a jornada de trabalho; violência extra-econômica é necessária para submeter o trabalhador; o capital luta para conquistar toda a semana de trabalho para a sua forma de exploração[2]. Reina a mais-valia absoluta e a produtividade do trabalho é baixa[3]. Ocorre uma subordinação meramente formal do trabalhador ao capital. O ponto alto dessa primeira tendência é o período manufatureiro (particularmente, entre os séculos XVI e XVIII), no qual o capital comercial ainda domina o industrial.

A segunda tendência é a que opera a partir do final do século XVIII, na qual o Estado, como resultado da luta de classes (pressão da classe operária sobre a capitalista), passa a atuar crescentemente para limitar a jornada de trabalho. É o período do predomínio progressivo da grande indústria nos países capitalistas mais desenvolvidos. Ocorre a generalização da exploração sob a forma da mais-valia relativa[4]. Pela simplificação do processo de trabalho, pelo vasto e recorrente trabalho das máquinas, pela criação de uma superpopulação relativa (exército industrial de reserva), o capital quebra aos poucos a resistência dos operários. Violência extra-econômica já não é mais necessária. O núcleo do processo produtivo se “objetifica”, passando dos trabalhadores e suas ferramentas manuais para a materialidade das máquinas. Temos então a subordinação real – não apenas formal – da classe trabalhadora pelo capital. Começa, diz Marx no capítulo VIII, o “assalto desmedido e violento [do trabalhador] como uma avalanche”. Todas as barreiras de moral, idade, sexo e natureza são destruídas. É o período em que o capital industrial domina as demais formas de capital (comercial e usurário).

É sobretudo nesse segundo momento histórico, de grande produtividade do trabalho, que se iniciam as lutas operárias pela limitação da jornada. É aí também – já apontamos – que o próprio Estado passa a atuar na regulamentação das horas de trabalho. Marx nos descreve tudo isso no item sexto do capítulo VIII, intitulado “A luta pela jornada normal de trabalho. Limitação por força da lei do tempo de trabalho […]”. Aí são apresentadas as primeiras cinco leis inglesas para regulamentação da jornada, aprovadas entre 1802 e 1833. Todas elas, entretanto, eram apenas formais, “letra morta”, segundo Marx. Somente com a lei fabril de 1833, imposta contra a vontade do capital, teria começado uma restrição real de horas e uma inspeção significativa nos ramos industriais ingleses mais importantes. Essa lei impôs o seguinte: jornada adulta de 15h (com 1 1/2h de refeição); jornada adolescente de 12h; proibição de trabalho para menores de 9 anos; limitação da jornada em 8h para crianças de 9 a 13 anos; proibição do trabalho noturno a menores de 18 anos. Graças a tal lei – e tomando como base as 8h de trabalho das crianças de 9 a 13 anos – surgiu o atual sistema de turnos rotativos de trabalho.

Pouco após a lei de 1833 tem início o forte movimento reformista cartista na Inglaterra[5]. Em 1844, como resultado da greve geral cartista de 1842, é aprovada nova legislação fabril. Se a legislação de 1833 se preocupara bastante com o trabalho infantil, a nova, de 1844, regulou com destaque o trabalho feminino. A jornada feminina adulta foi limitada a 12h; proibiu-se o trabalho feminino noturno; o trabalho de crianças entre 9 e 13 anos foi limitado a 6 1/2h; buscou-se diminuir o sistema de turnos para crianças; buscou-se regular de forma exata, quase militar, todos os horários (início, toda sorte de pausas e fim). O trabalho masculino maior de 18 anos manteve-se em 15h. O resultado foi que, na prática, entre 1844 e 1847 vigorou em todos os ramos da indústria inglesa a jornada padrão de 12h (o capital, entretanto, reagiu baixando de 9 para 8 anos a idade mínima de trabalho). Entre 1846 e 1847, frente ao iminente estouro da crise econômica, a agitação cartista pela jornada padrão de 10h atingiu seu ápice. Os trabalhadores obtiveram relativo sucesso, e, em primeiro de maio de 1848, foi aprovada a jornada de 10h para mulheres. Todavia, em meio à crise instalada e às demissões, e dada a destruição da organização cartista (prisão de seus líderes), o capital passou à ofensiva contra a jornada de 10h. Após dois anos de revolta capitalista – burlando a lei em todos os locais –, a regulação de 10h para trabalho feminino foi derrubada e o tempo do trabalho infantil foi ampliado. Segundo Marx, a luta pela jornada de trabalho produziu “uma guerra civil de meio século”[6].

 No item sétimo do capítulo VIII, Marx registra o início da agitação pela jornada de 8h nos EUA, bem como a defesa da mesma pela AIT (Associação Internacional dos Trabalhadores, depois chamada de Primeira Internacional), em seu congresso de Genebra (1866). A jornada de 8h, ainda que aprovada na Inglaterra ao final do século XIX, só passou a vigorar na maioria dos países ao longo do século XX.

Marx – aliás, dirigente da Primeira Internacional – era favorável à diminuição da jornada de trabalho. Todavia, como agora buscaremos demonstrar, ele também apontou limites claros à mera luta pela diminuição da jornada de trabalho. Para Marx, tal luta não necessariamente entrava em contradição com a acumulação capitalista.

3. A insuficiência da diminuição da jornada de trabalho

3.1. A mais-valia relativa já possibilita o aumento do grau de exploração com diminuição da jornada

No curto mas importante capítulo X do livro primeiro de O capital, Marx nos explica melhor o funcionamento da exploração capitalista pela extração da mais-valia relativa. Como já comentamos (em nota), a mais-valia relativa é extraída quando se diminui o tempo de trabalho necessário à produção do valor equivalente ao da força de trabalho. Assim, sem extensão da jornada, cresce o tempo de trabalho excedente (mais-trabalho, mais-valia). No exemplo que utilizamos em nota, supusemos uma jornada de 10h, em que 5h eram trabalho necessário e 5h, excedente. Caso sejam necessárias depois apenas 2 1/2h para produzir o equivalente ao valor da força de trabalho – devido a uma modificação na força produtiva geral do trabalho, com a implementação de novo maquinário –, 7 1/2h poderão ser apropriadas pelo capitalista (sob a mesma jornada de 10h). Suponhamos então que seja iniciada uma luta operária bastante radical e que ela afinal seja vitoriosa, impondo ao capital uma jornada de trabalho de 8h. O que ocorrerá? O tempo de trabalho necessário à reprodução do trabalhador não mudará (seguirá sendo de 2 1/2h). O tempo excedente, apropriado pelo capitalista, entretanto, diminuirá de 7 1/2h para para 5 1/2h. Esse tempo diminuirá, mas – o que nos interessa aqui – seguirá superior ao que era obtido antes, na época do paradigma tecnológico anterior e do valor superior da força de trabalho (quando a jornada era de 10h e metade dela consistia em trabalho excedente). Cinco 1/2 h de trabalho apropriado pelo capitalista seguem maiores do que as 5h do período anterior. Apesar da redução na jornada de trabalho – que certamente não agrada o capital –, a taxa de mais-valia seria ainda superior[7].

Assim, no mecanismo de funcionamento da mais-valia relativa já temos uma base teórica para considerar a possibilidade de aumento do grau de exploração dos trabalhadores pelo capital, apesar da diminuição da jornada de trabalho. Mas o problema não para por aí. Marx analisa, pouco à frente, a possibilidade de a exploração aumentar mesmo sem o desenvolvimento da mais-valia relativa, por meio do aumento da intensidade de trabalho.

3.2. O aumento da intensidade de trabalho como mecanismo que prepara as diminuições da jornada

No capítulo XIII do livro primeiro de O capital, denominado “Maquinaria e grande indústria”, Marx dá maior destaque à insuficiência da luta pela redução da jornada de trabalho. Vejamos particularmente os exemplos trazidos pelo autor no subitem “c” (“Intensificação do trabalho”) do terceiro item do capítulo. Nele, Marx traça claro diálogo com o capítulo VIII, particularmente com o trecho histórico sobre a legislação pela diminuição da jornada na Inglaterra (analisado por nós pouco acima). O autor esclarece que o prolongamento desmedido da jornada produz uma “reação da sociedade”, pois esta é ameaçada em sua raiz vital (a própria vida do trabalhador). Devido a isso, determina-se um limite máximo para a jornada. Mas tal limite, segundo ele, produz um “fenômeno de importância decisiva – a intensificação do trabalho”[8]. Temos agora de analisar esse “elemento decisivo”, para compreender melhor o próprio mecanismo de diminuição da jornada de trabalho.

Por maior intensidade de trabalho deve-se compreender, segundo Marx, “aumento de dispêndio de trabalho num mesmo tempo, aumento da tensão do trabalho, preenchimento mais denso dos poros do tempo de trabalho […]”[9]. Com a limitação da jornada, diz ele, ocorre uma “modificação no caráter da mais-valia relativa”. É quase como se a alma da mais-valia absoluta adentrasse a jornada diminuída. Com maior intensidade, mais trabalho é fornecido pelo operário, um tanto como ocorria com a mera expansão da jornada (ampliação do tempo de trabalho excedente). Eis por que, segundo Marx, além de medir o tempo de trabalho como “grandeza de extensão” (ampliação ou diminuição da jornada), temos agora de medi-lo também em seu “grau de condensação” (ou seja, em sua intensidade, sua profundidade).

Um trabalhador que produz um casaco em 10h pode até produzir dois no mesmo período, com o mesmo maquinário. Mas aí terá de se esforçar em dobro, acelerar seus movimentos (e os da máquina) em dobro etc. Portanto, ele se desgastará mais, pois aplicará o dobro de trabalho. Nessa situação de trabalho em dobro, cada um dos novos casacos produzidos por ele terá o mesmo valor que a unidade de casaco produzida antes (na condição menos intensa de trabalho), apesar de produzidos na metade do tempo. Em suma: menor tempo de trabalho não é necessariamente sinônimo de menor valor por unidade produzida, pois a intensidade de trabalho é um fator independente.

Segundo Marx, uma jornada de trabalho de 10h, se mais intensa, pode fornecer o mesmo quantum de trabalho (ou mais) que uma jornada de trabalho menos intensa de 12h. Marx sintetiza tudo isso da seguinte forma:

“A hora mais intensa do dia de trabalho de 10h contém, agora, tanto ou mais trabalho – ou seja, força de trabalho despendida – do que a hora mais porosa do dia de trabalho de 12h. […] Abstraindo o aumento da mais-valia relativa por meio do crescimento da força produtiva do trabalho, 3 1/3h de trabalho excedente fornecem ao capitalista, para 6 2/3h de trabalho excedente, a mesma massa de valor que antes 4h de trabalho excedente para cada 8h de trabalho necessário.”[10]

Marx então questiona: como é possível a intensificação do trabalho? Segundo ele, isso depende da “lei evidente” de que a eficácia da força de trabalho está na proporção inversa do tempo de efetivação (tempo de trabalho). Para o autor, a grandeza extensiva do trabalho é contraditória com a intensiva. Não se pode manter um trabalho de alta intensidade por longas horas. A maior intensidade só é possível de ser alcançada “dentro da jornada de trabalho reduzida”. Por isso, num determinado momento histórico, diz o autor, alcança-se

“um ponto nodal em que a extensão da jornada de trabalho e a intensidade do trabalho são mutuamente excludentes, de modo que o prolongamento da jornada de trabalho só é tolerável com um grau menor de intensidade do trabalho, e, inversamente, um grau aumentado de intensidade [só é tolerável] com a diminuição da jornada de trabalho.”[11]

Começa a ser apresentado aí o mecanismo pelo qual se prepara a diminuição da jornada de trabalho: a própria elevação da intensidade de trabalho. Em determinado momento, ela atinge um limite que só pode ser ultrapassado por meio da própria diminuição da jornada. O ultrapassar desse limite é de interesse do capital, pois acarreta em diminuição de custos operacionais de todo tipo, como veremos[12].

Exemplos dados por Marx

O autor nos fornece um exemplo da produção cerâmica, na qual a maquinaria desenvolvia papel bastante secundário ou nulo. Em tal caso, a diminuição da jornada de trabalho teria “elevado maravilhosamente a regularidade, a uniformidade, a ordem e a continuidade e a energia do trabalho”. A diminuição da jornada teria permitido trabalho mais intenso. Mas, esclarece o autor, isso não ocorreria apenas em ramos com pouco ou nenhum maquinário (como a cerâmica). Diz ele, a respeito da indústria têxtil (a indústria de ponta da época):

“A partir de 20 de abril de 1844, o Sr. R. Gardner, em suas duas grandes fábricas em Preston, fez com que se trabalhasse 11h em vez de 12h. Depois de cerca de um ano, o resultado foi que ‘a mesma quantidade de produto foi obtida, com o mesmo custo, e todos os trabalhadores ganharam em 11h o mesmo salário que em 12h.”[13]

Em seguida, Marx nos traz um exemplo da indústria têxtil, na qual “produziu-se mais em 11h do que em 12h, exclusivamente graças ao maior esforço dos trabalhadores e à economia de tempo”[14]. Enquanto os trabalhadores ganhavam o mesmo e trabalhavam menos horas, o capitalista recebia a mesma massa de produtos e de valor e poupava gastos com carvão, gás etc.

Nosso autor sintetiza outra vez, da seguinte forma:

“Tão logo a redução da jornada de trabalho se torna obrigatória – criando a condição subjetiva para a condensação do trabalho, ou seja, a capacidade do trabalhador dispender mais força num determinado tempo –, a máquina nas mãos do capital torna-se o meio objetivo e sistemático de espremer mais trabalho num mesmo tempo. Isso é feito de duas maneiras: por meio do aumento da velocidade das máquinas e do maior número de máquinas ou campo de trabalho a ser monitorado por um mesmo operário.”[15]

Em seguida, Marx afirma que a jornada de trabalho de 12h na Inglaterra, em determinados ramos, remonta a 1832. E já em 1836, segundo ele, um capitalista inglês tinha declarado que “[c]omparado com os tempos anteriores, o trabalho a ser feito nas fábricas [com jornada de 12h] aumentou muito, como resultado da maior atenção e atividade, o que ampliou consideravelmente a velocidade das máquinas […]”. Em 1844, Lorde Ashley, Conde de Shaftsbury, fez na Câmara dos Comuns uma exposição baseada em documentos, na qual constatou que com a limitação da jornada “o trabalho dos empregados nos processos da fábrica é agora três vezes maior […]”[16].

Marx aponta que, em 1844, com o domínio da lei das 12h, os industriais consideravam que a intensidade de trabalho tinha se tornado impossível de ser ampliada. Portanto, segundo eles, qualquer diminuição da jornada acarretaria uma diminuição da produção. O autor cita, quanto a isso, o industrial Leonard Horner. Todavia, diz Marx, o próprio Horner reconheceu publicamente, dez anos depois, que estava errado; que não entendera a “maravilhosa” “elasticidade da maquinaria e da força de trabalho humana”.

 Marx passa então a analisar a nova jornada de 10h de trabalho e mostra como o mesmo fenômeno de aumento da intensidade pode ser observado nela. A respeito da lei das 10h, nosso autor cita o relato de um inspetor de fábrica:

“Não há dúvida de que máquinas a vapor de mesmo peso [mecânico], muitas vezes as mesmas e idênticas máquinas, com apenas melhorias modernas acopladas, fazem, em média, 50% mais trabalho do que antes; e que, em muitos casos, as mesmas máquinas a vapor, idênticas, que nos tempos da velocidade limitada a 228 pés por minuto forneciam 50 cavalos de força, fornecem hoje, com menor consumo de carvão, 100 cavalos de força. […]”[17]

Marx cita outro relatório fabril, agora do ano de 1860: “Sem dúvida, a diminuição da jornada de trabalho […] foi o motivo dessas melhorias [diminuição de custos]. Estas e o esforço mais intenso do trabalhador têm o efeito de que pelo menos tanto trabalho é entregue na jornada curta quanto antes, na mais longa”[18]. Fica evidente que, para nosso autor, a diminuição da jornada não diminui o grau de exploração nem a acumulação do capital. Pelo contrário, dá-se até a ampliação desses elementos. Marx sintetiza assim:

“Como o enriquecimento dos donos de fábrica se ampliou com a exploração mais intensa da mão de obra pode ser comprovado pelo fato de que o crescimento médio das fábricas de algodão inglesas, entre 1838 e 1850, foi de 32 ao ano; já entre 1850 a 1856 [com a lei de 10h], foi de 86 ao ano.”[19]

Não é verdade que Marx considere que a limitação da jornada melhoraria necessariamente a saúde dos trabalhadores. Pelo contrário, por mais que elogie tal diminuição, Marx relembra que, segundo os próprios inspetores de fábrica, “a redução da jornada já produz uma intensidade de trabalho destruidora para a saúde dos trabalhadores”[20]. E o autor nos traz em seguida relatos sobre mortes de operários devido às condições mais intensas de trabalho.

Para Marx, como vimos, a diminuição da jornada de trabalho permite a elevação da intensidade até limites insuportáveis. Curiosamente, segundo o autor, é essa própria elevação ao limite que cria as condições objetivas para uma nova redução da jornada de trabalho, imposta pela classe trabalhadora, mas em certa medida admissível pelo capital. Diz o autor:

“Não há a menor dúvida de que a tendência do capital, tão logo a ampliação da jornada de trabalho tenha sido vetada de uma vez por todas pela lei, é de ressarcir-se por meio do aumento sistemático do grau de intensidade do trabalho […], e isso deve logo levar novamente a um ponto de inflexão, no qual será inevitável [unvermeidlich] uma nova redução nas horas de trabalho.”[21]

Marx nos remete, outra vez (agora em nota de rodapé), à agitação pela jornada de 8h, que ganhava amplitude à época. O autor, portanto, considerava “inevitável” a diminuição da jornada para 8h. Hoje poderíamos dizer que é inevitável – no longo prazo – a diminuição da jornada para 6h ou menos.

4. Um exemplo recente: a diminuição da semana de trabalho para 35h na França

Na França, após a vitória do “socialista” François Mitterrand à presidência, em 1980, começou-se a discutir a diminuição da semana de trabalho de 40h para 35h. Segundo os “socialistas”, isso levaria à diminuição do desemprego, pois supostamente novos postos de trabalho seriam criados (o que afinal, no longo prazo, não ocorreu). A partir de 1996 – após o longo governo Mitterrand –, a lei começou a vigorar parcialmente (em algumas empresas). Entre 1998 e 2002, sob o governo “socialista” de Lionel Jospin, a lei ampliou sua abrangência e, afinal, passou a vigorar por completo. Todavia, como mostram todos os estudos, a diminuição da jornada teve como contrapartida a flexibilização das condições de trabalho e o aumento da intensidade. Como argumenta R. Astarita, já na negociação da lei

“era esperado que houvesse ganhos de produtividade equivalentes a um terço da redução da jornada de trabalho. Esses ganhos seriam obtidos principalmente por meio de reorganizações de empregos. Mas também – embora não tenha sido mencionado durante a discussão da reforma – por meio da intensificação do trabalho. Na história do capitalismo, muitas vezes aconteceu que a redução da jornada de trabalho é compensada pela eliminação das paradas durante o processo de trabalho.”[22]

Ainda segundo Astarita, grandes empresas inicialmente se opuseram à reforma, mas logo viram os benefícios que traria, pois possibilitaria “redefinir o que deve ser considerado tempo de trabalho”. Ou seja, espaço foi aberto à flexibilização das condições de trabalho. O que segue, uma vez mais, é baseado em Astarita:

“Por exemplo, em padarias e transporte rodoviário, foi estabelecido o sistema de ‘horas equivalentes’, que considera o tempo de espera pelos clientes. Com ele, 38h ou mesmo 40h equivalem a 35h trabalhadas. Também houve mudanças no status dos intervalos. Por exemplo, a Peugeot removeu os intervalos de 1h e 45min por semana da duração efetiva. Os supermercados removeram dos cálculos de tempo pago os intervalos de 3min de hora em hora para caixas. O tempo de trabalho de um caixa em um negócio de varejo de alimentos foi oficialmente reduzido em 4h para 35h por semana, mas na verdade a redução foi de apenas 2,25 h.

Além disso, a adoção de 35h foi acompanhada em muitas empresas por uma mudança no cálculo anualizado das horas de trabalho. Isso permitiu reduzir o pagamento das horas extras. Por exemplo, os trabalhadores da Sansonite concordaram em trabalhar 42h por semana no verão, quando a demanda é mais alta; e 32h no inverno, quando a demanda diminui, sem custo adicional para a empresa. Por outro lado, em muitas empresas a ‘moderação salarial’ foi negociada em troca da redução da jornada de trabalho. Outra forma de flexibilidade foi a introdução da multitarefa. Invariavelmente, essas flexibilidades foram estabelecidas como contrapartida de 35h. Alguns estudos afirmam que 50% dos assalariados foram afetados por essas políticas.”[23]

Askenazy, baseado em pesquisas com grande números de trabalhadores franceses, esclarece que estes, sob a nova lei, sentiram seu trabalho se tornar mais intenso. Mas, mesmo assim, trabalharam com maior disposição:

“Embora a intensidade do trabalho seja percebida como crescente pela grande maioria dos funcionários – porque a maior carga de trabalho está associada às demandas da multitarefa –, os gerentes adotam tais condições com maior facilidade. Em contraste, mulheres trabalhadoras não qualificadas sentem que trabalham sob muito mais pressão.”[24]

Como se nota, a redução da semana de trabalho para 35h, na França, confirmou em grande medida o que Marx apontara sobre a diminuição da jornada na Inglaterra: a escravidão capitalista não diminuiu. Os “coletes amarelos” que o digam.

5. Conclusão

É compreensível que para a classe trabalhadora a diminuição da jornada de trabalho seja aceita com bons olhos. A compreensão do mecanismo da exploração capitalista não é claro à primeira vista. A classe trabalhadora não nota que fica a cada dia mais atada ao capital, mais controlada e subordinada. Nossa intenção com este texto não é a contraposição pura e direta à diminuição da jornada. O que desejamos destacar é que tal diminuição não está em contradição com a manutenção ou a ampliação do grau de exploração da classe trabalhadora pelo capital. Tanto a exploração pela via da mais-valia relativa quanto a intensificação do trabalho permitem ao capital, no médio e longo prazos, contornar todo “prejuízo” em seus lucros, advindo da diminuição da jornada. Com a reivindicação da diminuição da jornada, portanto, não se caminha necessariamente rumo a uma contraposição ao capitalismo.

Como afirmamos no texto anteriormente circulado – sobre a crítica de Marx aos “ganhos reais” de salário –, não queremos esconder nosso programa. As reivindicações que consideramos corretas para a superação do capitalismo podem ser encontradas aqui. Este texto visa a abrir a discussão com os demais companheiros, com base no que Marx nos apontou, para que juntos possamos superar as reivindicações usuais da “esquerda socialista”, reivindicações que, insistimos, dão base material à existência da burocracia sindical.


[1] Lenin já destacava que a “consciência de classe” marxista consiste na compreensão do caráter inconciliável de interesse entre as classes. Tratando das greves operárias na Rússia do final do século XIX, Lenin apontou seus limites no seguinte sentido: “[elas] assinalavam o despertar do antagonismo entre os operários e os patrões, mas os operários não tinham, nem podiam ter, a consciência da oposição irreconciliável entre os seus interesses e todo o regime político e social existente, isto é, não tinham consciência socialdemocrata [marxista]”. Ver LENIN, V., Que Fazer?. Início do item “a” do capítulo II.Itálico nosso.

[2] Devido à predominância da ferramenta (não ainda da maquinaria) no processo de trabalho, bem como devido à alta qualificação do trabalhador que maneja a ferramenta, o capital dependia demais da “subjetividade” do operário. Como comenta Marx sobre esse período histórico, caso o operário obtivesse em quatro dias o suficiente para reproduzir sua força de trabalho, dificilmente trabalharia mais dois ou três dias de graça para o patrão.

[3] A mais-valia absoluta é a exploração capitalista pela via da extensão da jornada de trabalho. Mantendo-se constante o tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho, a mais-valia absoluta ocorre pelo aumento do tempo de trabalho excedente. Por exemplo, consideremos uma jornada de 10h. Se metade dela é tempo de trabalho necessário, a outra metade será excedente (mais-trabalho, que produz mais-valia). Se a jornada é ampliada para 12h, o tempo de trabalho excedente crescerá em duas horas (de 5h para 7h).

[4] A mais-valia relativa é a exploração capitalista pela diminuição do tempo de trabalho necessário à reprodução da força de trabalho. O tempo de trabalho excedente cresce porque o necessário diminui. Isso é possível sobretudo com o aumento da produtividade do trabalho, que barateia as mercadorias. Quando tal barateamento afeta a cesta básica de consumo do proletariado – como afinal tende a ocorrer –, há uma diminuição no valor da força de trabalho, o que cria a condição para a diminuição do salário. No exemplo da nota acima (jornada de 10h), imaginemos que em vez de 5h para produzir o equivalente do valor da força de trabalho sejam necessárias apenas 4h (graças ao barateamento de produtos da cesta de consumo do trabalhador). Assim sobrarão 6h para serem apropriadas pelo capital, como trabalho excedente, dentro da mesma jornada de 10h.

[5] O cartismo é o primeiro movimento propriamente político (não meramente sindical) da classe trabalhadora internacional. Ele teve por base a situação de miséria econômica da classe trabalhadora inglesa, mas propôs solucioná-la ou atenuá-la por meio de medidas reformistas-constitucionais. A People’s Charter [Carta do Povo], que deu base ao movimento, foi publicada em 1838, após um ano de preparação por radicais, republicanos e socialistas de diferentes matizes (com destaque para herdeiros do owenismo, de traço cooperativista). Os seis itens da carta consistiam em: direito de voto universal para homens; voto secreto; que não fosse necessário ser proprietário para ser eleito ao parlamento; que os membros do parlamento recebessem salário; igualdade de distritos eleitorais; e eleição anual do parlamento. No início da década de 1840, tendo um novo impulso, o cartismo desaguou numa greve geral operária relativamente espontânea, bastante radical. Marx e Engels, desde a primeira metade da década de 1840, aproximam-se da ala à esquerda do cartismo. Em 1850, buscaram criar uma organização política internacional conjunta com tal ala (contando também com parte do blanquismo francês): a Sociedade Universal dos Comunistas Revolucionários.

[6] Ver sexto item do capítulo VIII do livro primeiro de O capital.

[7] Para não dificultar a exposição, não expusemos em detalhes o que é a taxa de mais-valia (ou grau de exploração). Ela consiste na divisão do da mais-valia pelo capital variávelde um determinado capital. Marx explica-o no capítulo IX do livro primeiro de O capital. Além disso, também para fins didáticos, abstraímos a diferença entre taxa de mais-valia e taxa de lucro. Sobre o assunto, ver três primeiros capítulos da seção 1 do livro terceiro de O capital.

[8] MARX, K., Das Kapital [O capital], capítulo XIII, item três. In MEGA2, II.10, Berlim: Dietz, 1991, p. 368.

[9] Ibidem, p. 369.

[10] Ibidem, p. 369. Três 1/3h e 6 2/3h são a divisão do tempo necessário e excedente, respectivamente, na jornada de 10h. Quatro horas e 8h são a mesma divisão na jornada de 12h.

[11] Ibidem, p. 368.

[12] Marx aponta aí, inclusive, algo bastante significativo para o presente: o capital garante que o trabalhador efetive trabalho mais intenso por meio do método de pagamento (entre outras formas de pressão, é claro). Em nota, o autor nos indica o sistema de remuneração por peça, algo em certa medida similar às “Participações nos lucros e resultados – PLRs” existentes hoje (elogiadas e defendidas por toda a burocracia sindical, inclusive a da “esquerda socialista”). O salário por peça força o trabalhador à maior intensidade de trabalho possível. Sobre ele, ver capítulo XIX do livro primeiro de O capital.

[13] Ibidem, p. 370.

[14] Ibidem, p. 370.

[15] Ibidem, p. 371. Em nosso trabalho político cotidiano, sempre vemos operários denunciando o maior número de máquinas a supervisionar, sob ritmo lunático de trabalho, em grande medida devido a demissões.

[16] Ambas citações em ibidem, p. 371.

[17] Ibidem, pp. 373-4.

[18] Ibidem, pp. 374.

[19] Ibidem, pp. 374.

[20] Ibidem, pp. 375.

[21] Ibidem, pp. 376.

[22] ASTARITA, R., “Francia, las 35 horas y flexibilización laboral”, disponível digitalmente em <https://rolandoastarita.blog/2017/07/12/francia-las-35-horas-y-flexibilizacion-laboral/>, acesso em 02/12/2021. Astarita se baseou sobretudo no estudo de ASKENAZY, P., “Working time regulation in France from 1996 to 2012”, disponível digitalmente em <https://academic.oup.com/cje/article/37/2/323/1696979>, acesso em 02/12/2021.

[23] ASTARITA, R., “Francia, las 35 horas…”, op. cit.

[24] ASKENAZY, P., “Working time regulation in France…”, op. cit. O autor nota ainda que o aumento da intensificação foi sentido com ainda maior destaque nos setores terceirizados.