Comitê de Enlace

Sobre o centralismo democrático [TS]

Por R. P. (TS) [1]

O centralismo democrático é o melhor método para a condução das atividades de uma organização política ou partido. Com ele é possível ter não apenas ação, mas expressão livre de individualidades e responsabilização de pessoas. Sem fronteiras bem determinadas, sem saber quem é e quem não é membro, sem fazer uma cuidadosa admissão de membros, não pode haver democracia interna nem divisão do trabalho. As formas federalistas (anarquistas), supostamente autonomistas, bem como as formas “mencheviques” de organização política, por criarem uma confusão entre quem é e quem não é membro, facilitam o controle de uma maioria por uma minoria. Nisso, elas dão as mãos ao centralismo burocrático da tradição stalinista.

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Muitas vezes se usa a frase “liberdade total de discussão, unidade total na ação” para descrever o centralismo democrático. Está correto; a frase tem utilidade para que se compreenda rapidamente (às vezes pragmaticamente) “como a coisa funciona”, mas, por ser muito sintética, ela em parte esconde importantes determinações. Tentemos analisar alguns elementos.

O compreensível receio frente ao centralismo

Algumas pessoas que pensam em se organizar num grupo de esquerda radical têm medo de fazê-lo pois acham que perderão certa liberdade, assumirão um pensamento uniforme, ficarão com uma lógica simplista que aponta sempre uma mesma causa pra todas as consequências. Esse receio é compreensível e legítimo, pois provém de uma péssima imagem de grupos centralizados, produzida historicamente pelo stalinismo. Na verdade, como tentaremos mostrar, essa péssima imagem nada tem a ver com centralismo democrático.

As formas mecânicas, simplistas ou pobres de ação e pensamento dos grupos políticos têm base num centralismo burocrático. A principal fonte deste é o interesse material dos dirigentes. Nesses casos, aqueles que dirigem o grupo têm interesses financeiro-materiais para se manter à frente do grupo, e, por isso, limitam a teoria e a explicação de fatos para controlar “seus” militantes. Isso ocorreu sobretudo em partidos comunistas stalinizados durante o século XX (mas também em alguns que diziam ser oposição a estes).

Outra fonte do centralismo burocrático, passível de existência mesmo em pequenos grupos, são os interesses de prestígio. Muitas vezes não há base propriamente material para o burocratismo, mas o fato de tal sujeito aparecer como “dirigente” ou “do grupo dirigente” cria um delírio de importância ou dá significação à sua (muitas vezes vazia) existência, que faz com que tema perder posições e aja burocraticamente. Por último, mas não menos importante, o centralismo burocrático, em grupos pequenos de esquerda, às vezes é fruto de uma miséria teórica ou política. A teoria política do grupo está aquém da realidade e força seu corpo dirigente a se impor por medidas burocráticas, invencionices políticas e improvisos.

Todas essas formas, por atender a interesses meramente particulares, fazem com que a política do grupo seja fundada por elementos privados antes de ser por elementos comuns.

Liberdade e necessidade

No capitalismo, devido ao fato de os “produtores” serem proprietários privados, não associados de forma consciente e consentida, os indivíduos não compreendem sua própria produção coletiva. Eles fazem a história coletivamente, diz Marx, mas sem terem consciência disso[2]. A síntese das atividades individuais aparece aos homens como algo externo (alienado). A força social do capital é um ser estranho (externo) que controla os homens. É a coisificação ou reificação, onde os sujeitos são controlados pelas coisas que produzem. Justamente porque os produtos sociais são antes de tudo privados, exigem a mediação de um terceiro elemento (um equivalente universal, o dinheiro) para se tornarem sociais. Esse meio, essa coisa, torna a relação estranha. O social, diz Marx, “está fora” (do indivíduo, das suas preocupações de produção etc.). Mesmo os capitalistas, privados, por mais que pretendam ser indivíduos “livres”, não o são.

Assim, não há, em nossa sociedade, propriamente liberdade individual. Há, rigorosamente, falando, necessidade, submissão a leis sociais cegas, à divisão pobre do trabalho, às estruturas de classe, a traços culturais/nacionais etc.

Em tal situação, o que pode haver são posturas diferentes diante da necessidade: uma postura inconsciente da necessidade (uma postura que pretende que é livre), e outra, consciente. A segunda postura, que parte da consciência da não-liberdade, que sabe que as liberdades são restringidas, é potencialmente mais livre do que a primeira, pois, curiosamente, quem sabe que não tem liberdade individual tem a liberdade de escolher o que fazer diante da sua ausência de liberdade. É o aparente paradoxo existencialista: as pessoas têm liberdade para decidir o que fazer do que a história decidiu fazer delas.

Mas, cabe perguntar: essas pessoas são “mais livres” de verdade? Em que sentido? Liberdade de quê e para quê? Afinal, que liberdade nos resta?

Ora, se as pessoas conscientes da necessidade reconhecem que não há propriamente uma liberdade individual enquanto tal (abstratamente), a única liberdade que lhes resta é a de suprimir conscientemente sua pretensão de liberdade individual e isolada. Ou seja, a única liberdade individual possível no presente é a de se associar de forma consciente; de criar, conjuntamente com outras pessoas, livremente, um projeto coletivo onde as individualidades podem florescer graças à divisão de trabalhos planejada, à solidariedade e ao apoio mútuos.

Por que essa liberdade é “consciente”? Primeiro, porque as pessoas entram numa organização política quando querem, se querem, e saem quando querem. Segundo, porque, de comum acordo, ao entrar, elas abrem mão conscientemente da sua postura de certezas absolutas individuais, em nome de “certezas” coletivas (veremos).

A riqueza da diversidade para a síntese

Se o partido ou organização política é uma “produção coletiva”, isso significa que sua linha política e a definição de seus dirigentes têm de ser produzidas coletivamente.

Numa situação ideal, não burocrática, se a linha política é frágil e os dirigentes são frágeis, é porque a produção coletiva ainda está frágil, ou seja, porque as capacidades individuais do conjunto do grupo ainda não estão bem desenvolvidas, porque ainda há pouca riqueza individual que se transforma em riqueza de produção coletiva. Reina ainda a pobreza. A única saída é a formação geral e a especialização de cada um naquilo que ache que pode se desenvolver como indivíduo dentro do coletivo. A multiplicidade de potências dá a riqueza coletiva no momento da síntese.

No momento da síntese (um congresso ou conferência, por exemplo), as riquezas individuais tornam-se força comum que supera as potências individuais. É um problema análogo ao que cria o que Marx chamou de “trabalhador coletivo” (cap. XIV de O Capital): trata-se de uma força que não consiste na mera junção ou somatória de partes, mas numa síntese que produz algo potenciado. Mas isso só é possível, numa organização política, com ampla liberdade para as individualidades se expressarem. Não há nada na concepção de Marx em contrário à liberdade individual. Ou seja, é necessária uma “democracia” para a expressão livre das individualidades.

Numa organização política, portanto, produz-se a vontade da maioria, mas ela é uma vontade lastreada na riqueza das contribuições individuais, na possibilidade de que, num período de discussão congressual ou conferencial – por exemplo – todo militante possa se reunir com qualquer militante para discutir qualquer assunto e produzir, individual ou coletivamente, qualquer texto, de balanço ou proposta.

Minoria e maioria

Essa liberdade individual, entretanto, não basta sem um método que relacione os interesses individuais aos comuns. Do contrário, retornaremos à forma alienada da relação das individualidades, comum ao capitalismo (no qual “o social está fora”).

Em certo sentido, o princípio da organização ou partido equivale ao princípio dos sovietes (nome russo para “conselhos”, forma de governo do socialismo): a minoria se submete à maioria. Num soviete [suponha que você está num], se uma determinada política ou proposta econômica é definida pela maioria do órgão do qual você faz parte, não lhe resta opção senão segui-la (ou mudar de região, sair). Ao participar de uma forma social assim, você abre conscientemente mão de sua certeza individual em nome da possível certeza da maioria.

Numa organização ou partido, se a maioria do organismo define uma política e você é contrário, você tem se submeter, mesmo que mantenha sua divergência. Se aquela política está correta ou não, somente a prática na história o dirá. Não há verdades absolutas, mas apenas verdades que se comprovam e realizam na história (ver a segunda tese Ad Feuerbach, de Marx). É preciso dar tempo para que aquela proposta política se confronte com a história e prove ser correta ou não. Isso não significa que você tem de renunciar à sua divergência, nem que você deixará de expressá-la nos locais propícios, mas apenas que outras posições (não à sua) serão testadas diretamente na prática.

Antes da aprovação de uma determinada linha política (ao final de um congresso, por exemplo), o sujeito tem toda a liberdade de esclarecer por que ela é errada ou correta, propor mudanças, linhas contrárias etc. Depois de aprovada a determinada linha, seja o sujeito favorável ou não, terá liberdade para comunicar erros e acertos dela – mas não terá liberdade para não aplicá-la (a não ser que saia da organização ou partido, abdicando da possibilidade de estar errado, retornando à ilusão da certeza absoluta-individual).

Na verdade, é o indivíduo que se submete ao coletivo

A rigor, como a produção da organização ou partido é coletiva e rica (múltipla), não é uma minoria que se submete à maioria. Não é um jogo de partes. É o indivíduo que se submete ao coletivo, ou todos que se submetem a todos.

Isso porque, a rigor, num congresso, por exemplo, um partido ou uma organização definem uma série de políticas e análises sobre várias situações e questões, escolhendo a tese de uma pessoa aqui, a tese de outra pessoa ou grupo acolá, a tese de uma terceira pessoa noutro ponto etc. Produz-se assim coletivamente, sintetizando, superando as individualidades parciais, deliberando o conjunto das posições por um cruzamento da riqueza das contribuições individuais. Às vezes você é minoria num tema e maioria noutro, mas você sempre será minoria frente ao todo.

Mesmo as considerações sobre uma tarefa específica do presente (uma tática particular, por exemplo) devem buscar se fundar numa consideração ou análise geral da conjuntura mundial, nacional e particular da situação partidária, o que, pela riqueza e complexidade dos assuntos tratados, diminui as possibilidades de que uma organização ou partido se divida meramente em blocos de maioria e minoria. O costume de resolver um problema sem consideração pelo todo tende a engendrar uma lógica que volta a organização ao pragmatismo e ao empirismo. Isso muitas vezes produz desnecessariamente oposições profundas pouco fundamentadas entre a militância, aumentando o risco de cristalização de frações. Fundamentar a pauta de um congresso ou conferência no universal era o método de Lenin, e foi em grande medida a virtude do Partido Bolchevique para superar, em forma saudável, oposições em processos deliberativos[3].

É claro que haverá sempre situações em que serão produzidos blocos – uma minoria e uma maioria. Esses são momentos delicados da vida de organizações ou partidos, que devem ser superados pela ampla democracia, não pelo burocratismo. Insinuar que esses blocos correspondem sempre e necessariamente a posições de classes diferentes (dizer, por exemplo, que a minoria é “pequeno-burguesa” e a maioria é “operária”) não ajuda na superação democrática das oposições e não corresponde à verdade. Esse apontamento é válido sobretudo para divergências de caráter tático[4].

Assim, sob a imposição da força comum do coletivo (lastreada nas riquezas da atividades produtoras individuais), tendem a ser diminuídos os riscos de frações ou facções permanentes, formas de oposição que em geral fazem a força coletiva perecer. A força coletiva admite diferenças e contrariedades, não contradições. Quando o grupo é tomado por contradições, por oposições mais profundas, que se cristalizam, tornam-se permanentes e de fato correspondem a interesses de classe diferentes, o coletivo perece[5].

A melhor forma de eleição de dirigentes

Da mesma forma como se produz linha política, produz-se dirigentes. Estes são os que, em teoria, zelam pela aplicação do deliberado em conjunto. O melhor é que eles não sejam representantes de uma minoria ou de uma maioria, mas que sejam produto (síntese) de uma multiplicidade, pois assim zelam melhor pelo conjunto e não por partes. Em processos ordinários não se deve, portanto, buscar formas de eleição de direção por chapas majoritárias, nem constituir direções por proporcionalidade entre chapas. A tradição de luta entre os marxistas desenvolveu historicamente, como melhor forma, a eleição nominal de dirigentes. Essa forma, além de seguir o princípio de eleição nos sovietes, era a usada pelos bolcheviques em seus congressos partidários. Lembremos um relato de Trotsky sobre o congresso que preparou a tomada do poder em 1917:

“Sobre as eleições do Comitê central, a ata do Congresso comunicou: Lê-se os nomes dos quatro membros do Comitê central que obtiveram o maior número de votos : Lenine – 133 votos sobre 134; Zinoviev – 132; Kamenev – 131; Trotsky – 131. Além disso são eleitos para o Comiteê central: Noguine, Kollontai, Stálin, Sverdlov, Rykov, Bukarine, Artem, Ioffe, Uritsky, Miliotin, Lomov. Note-se esta composição do Comitê central: sob a sua direção se cumprirá a insurreição de Outubro.”[6]

A forma de eleição nominal está regida pelo estatuto do partido bolchevique desde 1906. No congresso de 1905 não havia essa especificação. Ela passou a valer a partir de 1906 e seguiu assim por todo o período sadio da organização, entre eles o congresso acima citado[7].

Depois da produção coletiva de ideias e de dirigentes, o centralismo

O centralismo é o momento da execução dos trabalhos. É o momento da disciplina, da unidade do grupo, da intervenção precisa, do “exército de homens bem treinados”. Passada a discussão e produção de linhas políticas e dirigentes, é necessário executar. Se houvesse sempre, para cada coisa, momento de ampla discussão da política, o grupo seria paralisado por permanente discussão, o caráter de execução morreria e não se provaria, na história, se tal ou qual posição estaria correta ou errada. Assim, abdicar-se-ia da teoria ao abdicar-se da possibilidade de provar a verdade na história.


[1]   Texto escrito como contribuição ao Iº Congresso do grupo de juventude Território Livre, realizado em entre junho e julho de 2017. Esta versão foi diminuída.

[2]   Cf. o prefácio de Marx a Para a Crítica da Economia Política, de 1859.

[3]   O próprio Trotsky explica que esse era o método de Lenin, e reconhece que ele próprio, Trotsky, muitas vezes cometera erros na condução das deliberações partidárias, por tendência a resolver apressadamente as “questões políticas concretas”. Ele agia assim de forma empirista. Cf. TROTSKY, L., “Carta aberta ao camarada Burnham”, in Em defesa do Marxismo.

[4]   A ideia de que divergências táticas refletem necessariamente posições de classe corresponde mais ao método empregado pelo stalinismo. Veja-se as críticas que Trotsky faz a essa concepção, trazendo, para refutá-la, vários exemplos de deliberações do Partido Bolchevique no âmbito da tática, em TROTSKY, L., O Novo Curso, cap. 3, “Agrupamentos e frações”; cf. idem, Minha Vida, cap. 36, “A oposição militar”. Do fato de que as divergências não correspondem necessariamente a posições de classe, entretanto, não se deve concluir que todas as táticas sejam corretas para uma determinada conjuntura. Apesar de não serem “desvios de classe”, umas delas favorecerá mais e a outra menos, naquela conjuntura, a luta do proletariado.

[5]   Contrariedades ou diferenças são formas de oposição dentro de uma mesma classe. Contradições são formas de oposição entre classes.

[6]   TROTSKY, L., História da Rev. Russa, tomo II, capítulo “Os bolcheviques e os sovietes”.

[7]   Cf. GILL, G., The rules of the Communist Party of the Soviet Union. Londres: McMillan Press, 1988. A partir de 1907, pode-se ler o seguinte em todos os estatutos: “Vacâncias no CC serão preenchidas pelos membros candidatos eleitos no congresso pela ordem determinada pelo próprio congresso”. A ordem, no caso, era a dada pelo número de votos de cada pessoa que se candidatava. A eleição nominal era, na verdade, tão óbvia para os bolcheviques que, a rigor, nem aparecia propriamente regulada para os membros titulares. O estatuto só regulava a ordem de entrada dos suplentes (também por número de votos). Evidentemente – e como o texto de Trotsky na nota anterior comprova –, a eleição nominal valia também para os titulares, não apenas para os suplentes.