Comitê de Enlace

Vanguarda e conselhos em Lenin, Rosa e Trotsky [TS]

R. Padial

Resumo:

A partir das polêmicas surgidas no seio da social-democracia russa no início do séc. XX, que deram origem à divisão entre bolcheviques e mencheviques, analisamos possíveis pertinências das críticas a Lenin feitas então por Rosa Luxemburgo e Leon Trotsky. Salta da análise que estes buscavam superar, em nome de uma dialética, esquemas e fragilidades da II Internacional (os quais, segundo eles, Lenin em certa medida compartilhava). Para Rosa e Trotsky, a experiência dos sovietes russos de 1905 será chave na compreensão de uma nova forma organizativa, não apenas de luta, mas de poder e governo operários. Ao mesmo tempo, Lenin, quando percebeu a dimensão estratégica desses elementos [sovietes], foi o único que teve propriamente um grupo destacado de militantes preparado para conduzir à tomada e manutenção do poder. Resulta da análise geral que a teoria de partido de vanguarda se auto-nega enquanto elemento estrito ou privado (particular) isolado da classe, mas também se afirma enquanto necessária à insurreição do conjunto do proletariado. Mais do que propriamente uma lógica organizativa, a teoria de partido se mostra como programa.

1. Lenin em 1903 e os desdobramentos de sua teoria de partido

Dentro do chamado movimento marxista, costuma-se pensar em teoria de partido revolucionário e logo se faz alusão a Vladimir Lenin. De fato, foi ele quem primeiro elaborou os planos partidários mais consistentes do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) na virada do século XIX para o XX, que depois caracterizaram uma forma determinada de organização partidária que, bem ou mal, teve validade universal (aplicação em todo o mundo). O transcurso de tal elaboração parte de seu artigo “Por onde começar?” (1901), passa pela célebre “Carta a um camarada”(1902), pelo não menos célebre Que Fazer? (1902), pela polêmica no II Congresso do POSDR (1903), e deságua, por último mas não menos importante, em Um passo em frente, dois passos atrás (1904).

O ponto conceitualmente novo trazido por Lenin foi apresentado no II Congresso do POSDR, em torno do qual houve a famosa polêmica com J. Martov. Trata-se do problema do parágrafo primeiro do estatuto do partido, a respeito de quem é ou não militante do mesmo. Olhando de relance, a questão parece banal e a polêmica, sem sentido. Lembremos as fórmulas propostas.

Fórmula de Lenin:

“1. Um membro do Partido [Operário Social-Democrata da Rússia] é todo aquele que aceita o programa do Partido e apoia o Partido tanto financeiramente como pela participação pessoal em uma das organizações do Partido”.

Fórmula de Martov:

“1. Um membro do Partido Operário Social-Democrata da Rússia é todo aquele que aceita o programa do Partido, sustenta o partido financeiramente, e presta colaboração pessoal regular sob a direção de uma de suas organizações.”[1]

A diferença está em “participação pessoal em” ou “colaboração regular sob a direção de” uma organização do partido. Participar pessoalmente significa ser da organização; “colaborar”, não necessariamente. Martov queria trabalhar esse “não necessariamente”; queria alargar o status de membro a simpatizantes; queria criar artificialmente uma zona caracterizada por ser “nem dentro nem fora” do partido[2]. Sua preocupação era que o partido não se fechasse como uma seita; que pudesse fazer uma dialética com as “massas” trabalhadoras mais atrasadas (eis o motivo da busca de um certo “não-ser”). Lenin, obviamente, também não queria um partido fechado como uma seita e queria uma dialética com as “massas”, mas concebia tudo isso sob outros critérios.

Note-se, portanto, que não havia polêmica clara, entre a maioria dos membros do congresso – com exceção daqueles da liga judaica, o Bund, e parte dos chamados “economicistas” –, a respeito da noção de centralismo (contra federalismo), trabalho conspiratório (contra legalismo), disciplina (unidade de ação) etc. Praticamente todos eram formalmente favoráveis a tais elementos. Entretanto, os “duros” (partidários de Lenin) acreditavam que tais princípios só se efetivariam se o partido fosse capaz de distinguir, de forma clara e direta, sem pontos nebulosos (ou seja, com as fronteiras bem delimitadas), os seus verdadeiros militantes, os revolucionários profissionais, ou seja, seus membros efetivamente ativos na classe.

O problema é que, ao se atribuir a um setor da classe trabalhadora a noção de atividade, parecia-se privar dela o restante da classe, que passaria então, aparentemente, a portar apenas a noção de passividade. Para Martov e seus companheiros, doravante conhecidos como mencheviques (às vezes “moles” ou “suaves”), a atribuição do adjetivo “passividade” parecia algo muito duro quando recaía sobre aqueles que, querendo ou não, colaboravam conscientemente com o partido[3]. Martov e os seus acreditavam que tal dureza, afastando os elementos intermediários, tenderia a criar um abismo, quiçá intransponível, entre a organização revolucionária e a classe. Em suma, o resultado desse “formalismo” seria o sectarismo.

Rosa Luxemburgo e Leon Trotsky se destacaram nas críticas à teoria de partido de Lenin, centrando fogo em certas frases e esquemas possivelmente simplistas apresentados pelo líder bolchevique[4]. É conhecida a defesa feita por Rosa e Trotsky do elemento econômico e do caráter ativo das massas proletárias; a crítica à concepção, apresentada por Lenin (contra os “economicistas”), de que a consciência socialista seria trazida à classe trabalhadora externamente, de fora, pela mão do partido; bem como, ainda, a crítica à defesa que Lenin (contra Axelrod) faz do trabalho excessivamente conspirativo, herança, segundo eles, da pequena burguesia “jacobinista” (trabalho de revolucionários profissionais de comitê)[5]. Estariam corretas tais críticas? Lenin em geral se defendeu afirmando que suas afirmações foram tiradas de contexto e simplificadas ao extremo[6].

Se é verdade que há simplificação do que Lenin dizia – e às vezes ressentimento de ordem quase pessoal, sobretudo da parte de Trotsky –, também é verdade que o primeiro resvala por vezes (e no calor das polêmicas) em fórmulas esquemáticas um tanto dicotômicas. Lenin, como a grande maioria dos dirigentes socialistas internacionais de então, parece estar preso a certas concepções pouco dialéticas reinantes da II Internacional, sob a batuta do “centro ortodoxo”, a direção do Partido Social-Democrata Alemão (SPD). É no seio desse partido, de forma consciente desde o Congresso de Erfurt (1891), que se desenvolveram noções como a de um “programa mínimo” (econômico e reformista) oposto a um “programa máximo” (político e revolucionário), a ideia (desenvolvida claramente por Karl Kautsky na virada do século) de que a consciência socialista é trazida de fora (por intelectuais burgueses ou pequeno-burgueses) para dentro da classe operária[7]. Ver a teoria enquanto externa à classe significa ver o partido (o suposto portador consciente da teoria) enquanto externo à classe. Outra dicotomia muitas vezes trabalhada – dezenas de vezes – é a que se refere a trabalho ilegal oposto a trabalho legal (sobretudo em Que Fazer?).

Quem teria razão? Na verdade, é difícil responder de imediato. É provável que nenhum deles – Lenin, Rosa Luxemburgo ou Trotsky – tivesse razão diante da história. A história ainda estava por responder a toda a polêmica no longo prazo. Todavia, o início da resposta começou no ano seguinte e deu primeiramente razão a Rosa Luxemburgo e Trotsky contra Lenin. Os acontecimentos da primeira Revolução Russa (1905) confirmaram a atividade criativa das massas, e, diante delas, a fração de Lenin assumiu muitas vezes um papel sectário. Deve ser ressaltado o elemento, por vezes deliberadamente ignorado, de que os sovietes russos (conselhos de deputados operários), tal como os conhecemos, tal como vieram à luz na Revolução Russa de 1905, sobretudo tal como criados a partir da fundação do principal deles (o de São Petersburgo), foram, ao menos formalmente, uma proposição dos mencheviques, à qual os bolcheviques foram contrários.

O fato nos é narrado por Trotsky em sua importante autobiografia, no capítulo referente a 1905. Nela, tratando do estouro espontâneoatividade inesperada das massas – da forte greve geral de outubro de 1905, diz-nos o teórico da revolução permanente:

“O movimento não parava de se ampliar, mas havia o risco do fracasso, caso não fosse dirigido por uma organização de massa. Cheguei da Finlândia com um plano de uma organização eleitoral não partidária, que contasse com um delegado para mil operários. O escritor Iordansky, que seria mais tarde embaixador dos Sovietes na Itália, informou-me, no próprio dia da minha chegada, que os mencheviques já tinham lançado a palavra de ordem de um órgão eleitoral revolucionário, tendo um delegado para cada quinhentos operários. Era correto. Os membros do comitê central bolchevique presentes em Petersburgo opuseram-se resolutamente a uma organização eleitoral independente dos partidos, temendo que ela fizesse concorrência com a social-democracia. Os operários bolcheviques não tinham esse receio. As esferas superiores do bolchevismo conduziram-se de forma sectária em relação ao soviete até a chegada de Lenin, em novembro. […]. A volta tardia de Lenin do estrangeiro foi um dos motivos pelos quais a fração bolchevique não conseguiu assumir uma posição dirigente nos eventos da primeira revolução.”[8]

O elemento é esclarecido também por O. Anweiler, que não deixa de ironizar: “É muito significativo que o modelo da Comuna de Paris – que dará fundamento à teoria leninista de Estado e ao sistema bolchevista de conselhos – foi originalmente introduzido no marxismo russo não pelos bolcheviques, mas pelos mencheviques”[9]. Ainda de acordo com Anweiler, foi Martov quem mais teorizou então sobre os sovietes enquanto forma de “autoadministração revolucionária” (e Axelrod, a quem Trotsky dedicou sua brochura Nossas Tarefas Políticas, teria sido o “mais ardente propagandeador desse plano”). Os bolcheviques, sobretudo na ausência de Lenin, temendo que os sovietes substituíssem o partido, mantiveram uma posição no mínimo dúbia em relação a eles; em algumas cidades, atrapalharam ou atrasaram a criação dos sovietes. Tal era a posição estreita e esquerdista dos chamados “homens de comitê”, contra os quais Lenin teve de lutar muitas vezes em vida. Pra Lenin, tais homens de aparato, em geral intelectuais, apenas repetiam fórmulas aprendidas, sem refletir a fundo, de forma viva, a respeito delas[10]. Mas o próprio Lenin, apesar da defesa dos sovietes, não tinha ainda uma compreensão absolutamente clara da significação histórica (estratégica) dos mesmos, enquanto órgãos de poder (via-os apenas enquanto possíveis instrumentos de luta). Assim é que, segundo um importante biógrafo de Lenin, J.-J. Marie, a posição do dirigente bolchevique frente aos sovietes terminou vacilante na primeira revolução[11].

Não nos parece exagero afirmar, então, que em 1905 todos os elementos das críticas de Rosa Luxemburgo e Trotsky a Lenin se confirmam: os bolcheviques opuseram-se às massas (buscando substituir a organização criada pela atividade destas); o impulso das massas fez crescer a social-democracia (a consciência socialista) e não o contrário; os homens de aparato, devido a hábitos demasiado fechados, sectários e clandestinos (jacobino-blanquistas) não conseguiram se relacionar com o movimento; os intelectuais tenderam a rivalizar com os operários[12]. Além disso, o movimento de massas pressionou para o trabalho conjunto entre bolcheviques e mencheviques, na prática realizando em muitos comitês uma reunificação das frações. Em São Petersburgo, é fundamental o trabalho conjunto entre o principal dirigente bolchevique local, Krasin, e Trotsky, presidente do Soviete (o centro da revolução no país). Em novembro de 1905, o CC bolchevique se pronunciou a favor da unificação com os mencheviques, e Lenin e Bogdanov assistiram a uma conferência menchevique na capital. Os mencheviques, também visando à unificação, aprovam a fórmula clássica de Lenin para o parágrafo primeiro dos seus estatutos. Lenin manteve-se um dos maiores entusiastas da fusão até o seguinte congresso do partido. Quando este se reuniu, em abril de 1906 (portanto após o esmagamento da insurreição), e aprovou a fusão dos grupos, os mencheviques, justamente pela posição em relação aos sovietes e pelo prestígio de Trotsky, foram numericamente majoritários (tiveram 62 delegados contra 46 bolcheviques e elegeram 7 membros do CC contra 3 bolcheviques)[13]. Assim, sob o calor do movimento de massas, em 1905, as polêmicas do passado pareciam apenas isso. Trotsky e Rosa Luxemburgo ganhavam terreno para avançar em importantes sínteses. Que sínteses eram essas?

2. A dialética de Rosa Luxemburgo e Trotsky

O elemento mais importante que Rosa Luxemburgo e Trotsky teorizaram a partir da experiência de 1905 foi a ideia de que seria necessário deduzir um elemento intermediário entre os pólos dicotômicos anteriormente apresentados pela social-democracia. Não caberia trabalhar com as concepções de “passivo” oposto a “ativo”, “econômico” oposto a “político”, “legal” oposto a “ilegal”, sem permitir entre eles algo que é (são) as duas coisas ao mesmo tempo; um transpassamento entre dois elementos, uma zona negativa que não é uma coisa nem outra mas, ainda assim, tem, necessariamente, um estatuto e existência próprios. É a busca pelo “ser do não-ser” (pela existência do negativo no presente), que permitiria uma “dialética” partidária.

À luz da primeira revolução russa começam as reflexões de Rosa Luxemburgo, já em 1906, sobre a importância da chamada “greve de massas”. Seu texto mais célebre a respeito, aliás, chama-se significativamente Greve de massas, partido e sindicatos (1906)[14]. Rosa Luxemburgo busca a todo momento deduzir um elemento intermediário entre o econômico-sindical e o político-partidário. Tal elemento seriam as greves de massas e os organismos destas, responsáveis pela insurreição. As greves de massas não seriam propriamente políticas – e Rosa dá diversos exemplos da grande potência das lutas econômicas, sobretudo pela redução da jornada de trabalho –, mas também não seriam propriamente econômicas, uma vez que criariam necessariamente órgãos de insurreição. Rosa afirma e reafirma que o movimento em 1905 caminhou não apenas do econômico ao político, mas também do político ao econômico. E sintetiza, a respeito da luta ainda em janeiro de 1905 (o “domingo sangrento”):

“Aqui a luta econômica foi na realidade não um fracionamento, não um esboramento da ação, mas uma mudança de frente; a primeira batalha contra o absolutismo transformava-se em breve e naturalmente num ajuste geral de contas com o capitalismo, e este, em conformidade com sua natureza, assume a forma de conflitos parciais em favor dos salários. É falso dizer que a ação política de classe em janeiro foi destruída porque a greve geral se repartiu em greves econômicas. É exatamente o contrário (…).”[15]

Para Rosa, após a greve geral de janeiro, um novo princípio teria surgido: “as próprias relações entre operários e patrões sofrem transformações”, pois “o princípio do capitalista senhor de sua casa é praticamente suprimido. Vimos constituírem-se espontaneamente Comitês Operários, únicas instâncias que negociam com o patrão, nas maiores fábricas (…)”[16]. Esse novo princípio, resta claro, é o que depois será chamado de duplo poder, ou poder dual – um contrapeso ao poder administrativo capitalista dentro da fábrica. A extensão desse poder durante todo o ano de 1905, segundo Rosa, teria culminado na criação dos conselhos (sovietes) ao final do ano, enquanto dualidade de poder em âmbito superestrutural (além da fábrica), capaz de dirigir o conjunto dos comitês operários. Diz-nos ela:

“Em outubro tem lugar em São Petersburgo a experiência revolucionária da instauração do dia de trabalho de 8h. O Conselho dos Deputados Operários [Soviete] decide criar, por métodos revolucionários, o dia de trabalho de 8h. É assim que numa data determinada todos os operários de São Petersburgo declaram aos seus patrões que se recusavam a trabalhar mais de 8h por dia e abandonariam os seus locais de trabalho à hora fixada.”[17]

A greve de massas, tal como apresentada na Rússia de 1905, diz ainda a revolucionária, é um fenômeno “tão móvel que reflete em si todas as fases da luta política e econômica, todos os estágios e todos os momentos da revolução”[18]. Rosa Luxemburgo não poderia ser mais clara na apresentação do problema: “somos surpreendidos pelo fato de o elemento econômico e o elemento político estarem aí indissoluvelmente ligados. Novamente, a realidade se afasta do esquema teórico (…)”[19]; “causa e efeito sucedem-se, alternam-se incessantemente”, economia e política estão “longe de se excluírem reciprocamente como pretende o pretensioso esquema”[20].

Trotsky, da mesma forma, em seu Balanço e Perspectivas (1906), retoma questões de uma coincidência entre os elementos econômicos e políticos. Entretanto, o mais rico de suas reflexões no período diz respeito aos sovietes como órgãos não apenas de luta proletária, mas também instituições democráticas do governo operário (ditadura proletária). Assim, em conformidade com Rosa Luxemburgo, para Trotsky há um elemento “intermediário” (econômico e político ao mesmo tempo), que é uma forma organizativa própria (deduzida, por exemplo, para além da forma organizativa sindical ou da forma partidária). Mas não apenas isso: para ele, esse elemento intermediário é também a forma embrionária do governo operário futuro.

Em outro importante texto, também de 1906 – “O Conselho de Deputados Operários e a Revolução”, publicado em Neue Zeit –, Trotsky apresentou de forma ainda mais clara a questão:

“O conselho organizava as massas, dirigia as greves políticas e as manifestações, armava os operários…

Mas outras organizações revolucionárias já o haviam feito antes dele, faziam-no ao mesmo tempo e continuarão fazendo depois de sua dissolução. A diferença estava em que [o Conselho] era, ou ao menos aspirava a ser, um órgão de poder. Ainda que o proletariado, assim como a imprensa reacionária, chamassem o conselho de ‘governo operário’, de fato o conselho representava um embrião de governo revolucionário.[21]

3. O elemento médio como negativo

Para sermos honestos com a história dessa polêmica, é necessário afirmar que exageramos ao dizer que antes de 1905 os revolucionários não pensavam em “elementos intermediários” entre os pólos dicotômicos. Na verdade, o tema é comum desde as primeiras polêmicas que dividiram o POSDR em 1903. Lá, por exemplo, ao defender sua fórmula, Lenin afirmara conter nela toda uma série de lose Organisationen [organizações frouxas][22]. Não à toa, Lenin usa o termo alemão – ele faz assim referência à experiência do SPD, que baseava sua atuação sobre uma série de organizações e associações “frouxas”, culturais e sindicais, que serviam de ligação entre o partido e a massa, portanto, também de porta de entrada à militância. Da mesma forma, em Um passo em frente, dois passos atrás (1904), Lenin concede que é preciso conceber estruturas frouxas e apresenta cinco categorias de organizações, desde as propriamente compostas de revolucionários profissionais, até os amplos elementos não organizados da classe, que se submetem à direção do partido[23]. Trata-se da compreensão de que o partido chega às massas por meio de círculos concêntricos. Era assim que Lenin buscava fazer sua “dialética” com a “massa”. A concepção era generalizada na social-democracia de então e aparecia também no Trotsky anterior à experiência dos sovietes, em Nossas Tarefas Políticas (1904):

“[E]stá claro que nosso partido representará sempre, do centro até a periferia, toda uma série de círculos concêntricos que aumentam em número mas diminuem em nível de consciência. Os elementos mais conscientes e, portanto, mais revolucionários, estarão sempre ’em minoria’ em nosso partido.”[24]

Na verdade, essa concepção inicial de Trotsky e de Lenin, que vê a construção partidária um pouco como “camadas de cebola” construídas e direcionadas pelo partido até a massa – enquanto “colaterais”, “tendências” ou “centrais sindicais” do partido etc. – não nos parece ter muito de dialético. Trata-se de formas de construção partidária mais associadas à social-democracia alemã e até mesmo, curiosamente, a Martov. Trata-se de formas que atribuem estatuto igual a membros e a não-membros do partido, as quais apenas, a nosso ver, diluem a potencialidade diretiva do centralismo-democrático, adaptando-o à frouxidão. Tais formas buscam remediar o problema do fosso entre partido e massas (consideradas passivas) por meio da criação artificial, pelo partido, de supostos níveis organizativos intermediários. Estes, todavia, nada têm nada a ver com as formas organizativas e de frente única criadas pela ação das massas russas em 1905, formas que eram econômicas e políticas ao mesmo tempo, formas de autogoverno da classe, formas que dirigiam, elas próprias, a imensa maioria, o conjunto da classe, e não eram instrumentos artificiais de “cooptação”.

Na concepção social-democrata das lose Organisationen é o partido que vai (ativamente), como via de mão única, às massas (passivas), e constrói as formas organizativas “intermediárias” necessárias para abarcá-las. Na concepção que buscam desenvolver Rosa Luxemburgo e Trotsky, é a ação recíproca do partido e das massas que constrói um nível organizativo intermediário (semi-legal), que não é estritamente nem uma coisa nem outra (nem partido nem formas legais ou sindicais). Esse nível organizativo intermediário se expressa enquanto comitês de fábrica e, depois, como conselhos (ambas formas que não são, nunca, “de um partido”).

Aqui reside portanto toda a dificuldade. Ao se observar a sequência de três níveis: 1. “econômico”, 2. “não-econômico-nem-político”, 3. “político”; ou, ainda: 1. “legal”, 2. “semi-legal”, 3. “ilegal”; ou ainda 1. “mínimo”, 2. “intermediário”, 3. “máximo”; ao se observar a sequência desses três níveis, pode-se supor que o movimento seja linear; pode-se se supor que a “consciência” das massas, estimulada pelo partido, parta do “econômico” (luta sindical, de caráter legal), estabeleça-se no “não-econômico-nem-político” (colateral, central sindical) e atinja finalmente o “político” (o partido, consciente da ilegalidade do modo de produção capitalista, portanto, da necessidade de sua derrubada). No entanto, pelo contrário, o que deve reger esse movimento de ascenço em três níveis não deve ser uma teleologia positiva, mas um processo negativo. Não se trata de fazer uma “escadinha” (1 à 2 à 3), mas de uma síntese (1–3 | 2)[25].

Assim, o elemento intermediário não é um “degrau” abaixo do “político” e acima do “econômico”. Na teoria e experiência de 1905, o elemento intermediário é uma síntese, no sentido dialético de Aufhebung, enquanto uma superação que nega, uma dissolução que conserva em si os polos anteriores. O intermediário está além (acima) da mera oposição entre econômico e político, e, por isso mesmo, é também a forma superior de governo da classe, a forma que representa o governo futuro socialista, a superação do capitalismo. Os comitês de fábrica e os conselhos são, a um só tempo, superação dos sindicatos e partidos criados pela classe trabalhadora sob o capitalismo – formas fundamentais que a classe criou para a luta contra o sistema capitalista, e necessários também na transição ao socialismo, mas que após essa transição histórica diminuem seu sentido e importância. Os comitês de fábrica e os conselhos são os órgãos de administração e governo da futura economia e sociedade socialistas.

4. O retorno de Lenin

Na verdade, se formos rigorosos, perceberemos que do apontado acima resulta teoricamente a necessidade absoluta de um partido para a criação do elemento organizativo superior (as formas de autogoverno e administração da classe). E mais: subentende-se que quanto mais bem delimitado e organizado, rigoroso, ele for, melhor (mais potente) será a dialética realizada entre os níveis legal e ilegal. É isso que pouco depois perceberão – um tanto tragicamente – tanto Rosa Luxemburgo quanto Trotsky. Ambos chegarão tardiamente à conclusão da corretez de Lenin quanto à teoria estrita de partido[26].

Foi Lenin, portanto, quem retornou à testa da história, em 1917. O fato de ter dedicado sua vida à criação de um partido de revolucionários profissionais, de ação, bem delimitado em relação ao conjunto da classe, deu-lhe enormes vantagens diante dos demais, sobretudo quando se tornou adepto da teoria dos conselhos enquanto órgãos de governo das massas trabalhadoras e oprimidas. “Todo o poder aos sovietes” é a consigna associada ao bolchevismo em 1917, particularmente desde as Teses de Abril[27]. Na verdade, ninguém no período submeteu a uma análise tão séria e rica o papel dos sovietes enquanto órgãos de autogoverno como o próprio Lenin em O Estado e a Revolução (escrito entre agosto e setembro de 1917). A grande vantagem de Lenin foi que sua antítese ao movimento das massas (seu partido) era uma alavanca muito mais poderosa e organizada do que as propostas por Rosa Luxemburgo e Trotsky, que mal tinham frações próprias. Lenin foi assim capaz de fustigar muito mais a fundo o movimento espontâneo das massas, pois lutara sempre por fazer um partido bem delimitado. Isso fez com que a dialética criada pela história em 1917, graças à atividade conjunta (síntese) das massas e do partido bolchevique, fosse poderosa o suficiente para a tomada e manutenção dos poderes político e econômico.

5. Conclusão

É da resolução dialética das posições de Lenin, Rosa Luxemburgo e Trotsky, ao longo das duas revoluções russas, que a nosso ver nasce o ajustamento de forma e conteúdo na teoria de partido necessária à classe trabalhadora em seu processo de emancipação. É sim necessário que a classe trabalhadora aja para criar, a partir de seus órgãos legais, novos órgãos de frente única da classe (agora propriamente como órgãos de poder, ainda que embrionário); mas é também necessária – enquanto pré-condição ou pressuposto de tudo isso – a existência de um partido cujo ingresso é bem delimitado, para auxiliar as massas, para propor órgãos de poder da classe, para que estes não refluam e substituam finalmente o poder oficial burguês. O processo tem de ser, portanto, ao mesmo tempo comum/autônomo (por parte da classe trabalhadora como um todo, ou o “grande partido” da classe) e particular (por parte da organização revolucionária (o partido em sentido estreito). A nosso ver, é só dessa relação que surge a teoria dialética partidária. Assim, em última instância, a teoria de partido não deve levar em consideração apenas o elemento privado (a parte da classe organizada em separado, sua vanguarda), mas, enquanto teoria de formas organizativas, uma teoria de partido tem de considerar também o elemento comum (os organismos de frente única da classe, desde os sindicais até os duais).

Assim, a teoria de partido – enquanto teoria de formas organizativas para a insurreição revolucionária – tem de conter ao mesmo tempo os bolcheviques e os conselhos, a vanguarda bem delimitada e seu elemento “externo”, a forma organizativa estrita e as formas organizativas das massas. Portanto, a teoria de partido, superando limitações formais, só poder ser também, em última instância, e ao mesmo tempo, uma teoria de programa revolucionário.

–––

Bibliografia:

ANWEILER, O., Les Soviets en Russie, 1905 – 1921, Paris: Gallimard, 1972.

ATAS DO SEGUNDO CONGRESSO DO POSDR (1903), São Paulo: Editora Marxista, 2014 (vol. 1) e 2015 (vol. 2).

BENOIT, A.H.R., “Teoria (dialética) do partido ou negação da negação leninista”, in Revista Outubro, São Paulo: Xamã, 1998.

BROSSAT, A., El pensamiento político del joven Trotski. Mexico DF: Siglo Veintiuno Editores, 1976.

BROUÉ, P. O Partido Bolchevique, São Paulo: Sundermann, 2014.

LENIN, W., Que Fazer?, São Paulo: Alfa-ômega, 1986.

__________.Um passo em frente, dois passos atrás, São Paulo: Alfa-ômega, 1986.

LUXEMBURGO, R. Greve de Massas, partido, sindicatos. São Paulo: Kairós, 1979

MARIE, J.-J. Lenin. Madrid: POSI, 2008,

TROTSKY,  Nossas Tarefas Políticas, disponível digitalmente em <https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1904/tareas.htm>, acesso em 14 de maio de 2018.

__________. 1905, suivi de Bilan et Perspectives, Paris: Edition de Minuit, 1969.

__________. Minha Vida, São Paulo: Sundermann, 2017.


[1]   ATAS DO SEGUNDO CONGRESSO DO POSDR (1903), São Paulo: Editora Marxista, 2014, vol. 1. Para a fórmula de Lenin, cf. p. 253. Para a fórmula de Martov, cf. p. 32.

[2]   Ver, nas referidas ATAS (vol. II), a XXII e a XXIII sessões do Congresso.

[3]   “Menchevique”, ou “membro da minoria”, opõe-se a bolchevique, “membro da maioria”. Vale sempre lembrar que a fórmula de Martov foi vitoriosa contra a de Lenin, por 28 votos a 23 (a posição de Martov era portanto inicialmente majoritária). No entanto, no decorrer do congresso, com a saída dos membros do Bund e de economicistas (que votaram por Martov), o grupo de Lenin tornou-se majoritário e conquistou os órgãos centrais. Daí os adjetivos tão frequentemente citados.

[4]   Para as críticas diretas de Trotsky a Lenin, ver seu Relatório da Delegação Siberiana (1904) e Nossas Tarefas Políticas (1904). Para as críticas diretas de Rosa a Lenin, ver Centralismo e democracia (1904). Os dois últimos são respostas diretas a Um passo em frente…

[5]   Para a questão da consciência trazida externamente à classe, ver Que Fazer?, item “II. A espontaneidade das massas e a consciência social-democrata”. Para a resposta de Lenin a Axelrod sobre a questão do jacobinismo ou blanquismo (babeuvismo), ver Um passo em frente, dois passos atrás, item “r”, “O novo Iskra. Oportunismo nas questões de organização”. Cabe comentar que Rosa Luxemburgo e Trotsky apresentaram ainda a ideia de que o resultado necessário do ultra-centralismo e do apartamento das massas seria não apenas a substituição (“substituísmo”) do partido em relação à classe (uma ditadura sobre o proletariado), mas também a ditadura do Comitê Central sobre o partido e uma ditadura do dirigente máximo sobre o Comitê Central. Não são poucos os que, erroneamente, viram em tais posições de Lenin o gérmen do stalinismo. Rosa Luxemburgo e Trotsky reconhecerão depois que estavam errados.

[6]   No prefácio de 1907 à coleção Doze Anos (na qual são republicadas, entre outras, Que Fazer? e Um passo em frente…), Lenin chama a atenção para o fato de que Plekhanov, após 1904, passara a afirmar que diferia dele próprio, Lenin, na questão da “consciência” trazida externamente. Lenin esclarece que, quando da publicação de Que Fazer?, Plekhanov (e todo o corpo do Iskra) não apresentara nenhuma questão a respeito. O motivo disso, segundo Lenin, adviria do fato de que todos tinham consciência clara de que a argumentação tinha por fim único o combate aos economicistas, e não se propunha a apresentar um problema de princípio filosófico. O mesmo vale, segundo Lenin, para a acusação que passou a sofrer, após 1904, de “desprezar” o movimento econômico e sindical (e, por tabela, o caráter ativo das massas) em nome do “político” (o partido).

[7]   Cf. artigo de Kautsky, “Um elemento importado de fora” (em Die Neue Zeit, 1901).

[8]   TROTSKY, L., Minha Vida, São Paulo: Sundermann, 2017, pp. 218-19. Os grifos itálicos são nossos. Note-se que em seu livro 1905 (publicado em 1909), justamente de análise dos acontecimentos da primeira revolução, Trotsky afirma que o modelo eleitoral/representativo de delegação tivera precedente na “Comissão Chidlovsky”. (Ver capítulo “Formação do Soviete de Deputados Operários”). Trata-se de comissão formada pelo Tzar em janeiro de 1905 em resposta à greve geral ocorrida em São Petersburgo. Seu nome – Chidlovsky – refere-se ao senador responsável por tal comissão ante o Tzar. O intuito de tal comissão, ao menos formalmente, era estudar as causas do descontentamento dos operários das fábricas de São Petersburgo e os meios de as remediar. A comissão fora formada por representantes do governo e da burguesia, bem como por operários. Estes seriam eleitos entre nove categorias profissionais da capital, na proporção de um delegado para cada 100 operários. Dando crédito a Oskar Anweiler, vale notar que já ante à formação dessa comissão as duas alas da social-democracia russa – os bolcheviques e mencheviques – se dividiram. Embora ambas defendessem participar da eleição, sua tática era diferente. Os bolcheviques viam nela apenas uma manobra diversionista do governo e pensavam numa forma de esvaziá-la ou boicotá-la. Os mencheviques queriam transformá-la numa tribuna para ampliar o alcance sobre a classe operária. A posição dos bolcheviques foi majoritária; apresentou-se ao senador uma série de reivindicações enquanto ultimatum, negadas a seguir pelos representantes do poder. Os representantes operários então boicotaram a comissão e emitiram um manifesto à população. A vida de tal comissão, portanto, não passou de duas semanas. Sobre isso, ver ANWEILER, O., Les Soviets en Russie, 1905 – 1921, Paris: Gallimard, 1972, p. 41 et ss;e p.65 (para a proporção da delegação).

[9]   ANWEILER, O., op. cit., p. 84. Trad. nossa.

[10] Sobre atraso ou não criação de Sovietes em regiões predominantemente bolcheviques, ver ANWEILER, O., op. cit., p. 97 e BROUÉ, P. O Partido Bolchevique, São Paulo: Sundermann, 2014, p. 74. O principal representante do esquerdismo dos “homens de comitê” era então A. Bogdanov, importante dirigente da fração. Outro característico representante desse estreito espírito de comitê era o posteriormente famoso Stalin. Ver MARIE, J.-J. Lenin. Madrid: POSI, 2008, p. 85; ANWEILER. O. op. cit., p. 93.

[11] As defesas que Lenin fez dos Sovietes ainda no exterior são bastante prudentes. Lenin deixava sempre a cargo da direção local a decisão de publicar ou não seus textos a favor dos sovietes (o que não ocorreu, sob direção de Bogdanov). Cf. MARIE, J.-J., op. cit, p. 87 et ss;cf. ANWEILER. O. op. cit., p. 99.

[12] Alain Brossat, defensor, em última análise, da teoria de Lenin, também reconhece que as teorias de Rosa Luxemburgo e Trotsky restaram confirmadas em 1905. Ver BROSSAT, A., El pensamiento político del joven Trotski. Mexico DF: Siglo Veintiuno Editores, 1976, p. 47 e p. 64.

[13] Ver MARIE, J.-J., op. cit, pp. 89-91. A fusão, como se sabe, não foi muito longe. Divergências importantes se manifestaram no congresso, como as referentes às expropriações, em nome das quais Lenin, Krasin e Bogdanov mantiveram um “grupo econômico especial” e secreto. Além disso, há a importante divisão a respeito da participação ou não na Duma (pré-parlamento). Os bolcheviques – com a única exceção de Lenin – foram contrários à participação e os mencheviques foram favoráveis. Mas o mais importante é que parte dos mencheviques, à frente deles Plekhanov, inicia uma teorização sobre o necessário período de refluxo e reação que adviria da derrota, o que, para minimizar danos, justificaria uma política adaptada à oposição liberal-burguesa à monarquia. Sob os anos de reação, parte significativa dos mencheviques, renegando os métodos da insurreição armada, iniciará então um caminho decidido rumo ao oportunismo e à liquidação do partido (contra o que os bolcheviques lutaram e venceram). Já no congresso seguinte (maio-junho de 1907) foi visível a diferença entre as duas frações. Trotsky comenta o traço vergonhoso, cético, descompromissado, de desprezo pelo partido, por toda perspectiva ampla e por si mesmos, presente na figura dos mencheviques, ao passo que os bolcheviques se caracterizavam então por seus vínculos, sua fé no futuro, sua audácia, seu “patriotismo de partido” e seu caráter militar. Ver idem, ibidem, p. 94.

[14] Curiosamente, Rosa inicia seu livro relativamente a favor dos bakuninistas quando da polêmica destes com Engels a respeito da “greve geral”. Rosa enxergará cada vez mais em determinadas posições do último Engels (década de 1890) a raiz de parte das posições dicotômicas e simplistas da social-democracia alemã. Veja-se o discurso de Rosa Luxemburgo no Congresso de Fundação do Partido Comunista Alemão (KPD), em 1919, onde retornam suas críticas ao programa dicotômico de Erfurt e a revolucionária se volta novamente contra Engels.

[15] LUXEMBURGO, R. Greve de Massas, partido, sindicatos. São Paulo: Kairós, 1979, pp. 30-31. O primeiro grifo é nosso. O segundo, dela.

[16] Idem, ibidem, p. 35.

[17] Idem, ibidem, p. 39.

[18] Idem, ibidem, p. 42.

[19] Idem, ibidem, p. 45.

[20] Idem, ibidem, p. 46.

[21] TROTSKY, L. “El consejo de los diputados obreros y la revolucion”, in BROSSAT, A. op. cit., p. 261. Trad. nossa.

[22] ATAS DO SEGUNDO CONGRESSO DO POSDR (1903), São Paulo: Editora Marxista, 2015 vol. II. XXII Sessão, p. 88.

[23] LENIN, Um passo em frente, dois passos atrás. São Paulo: Alfa-ômega, 1986, p. 261.

[24] TROTSKY, L., Nuestras tareas políticas (1904), disponível digitalmente em <https://www.marxists.org/espanol/trotsky/1904/tareas.htm>, acesso em 14 de maio de 2018.

[25] Desculpem-nos pela expressão pouco clara do problema por meio de números. Quando escrevemos 1–3 não buscamos expressar um tipo de subtração. Há entre esses número um traço, não um sinal de menos. Ele significa que há uma inter-relação entre os dois elementos: a relação entre 1 (“econômico”) e 3 (“político”) produz 2 (algo nem-econômico-nem-político). Ou, mais propriamente, o partido (ilegalidade), atuando dentro dos organismos legais de frente única da classe (como sindicatos), trabalhando suas contradições, faz assim emergir dentro da legalidade a semi-legalidade (formas de poder dual, ou paralelo, da classe trabalhadora), como os comitês de fábrica e depois os conselhos.

[26] Da parte de Rosa, o tema da direção forte e dura torna-se quase uma obsessão em seus últimos escritos, sobretudo à medida que se manifestou a impotência de seu grupo político diante da revolução alemã. O “espontaneísmo”, em tal revolução, nem de longe deu conta da situação, e o revés do processo findou com o assassinato da própria Rosa. Basta ler os pequenos artigos da autora pouco antes de seu assassinato, sobre a necessidade de dirigentes e centralismo. Trotsky, por sua vez, recaiu até em certo “ultra-centralismo” (entre 1919 e 1921), contra o que o próprio Lenin protestou. Trotsky, após a derrota das revoluções na Alemanha, na China e na Espanha, passou a dar cada vez mais atenção à questão do partido, tirando a conclusão de que o partido é pressuposto (condição) para que as massas trabalhadoras tomem e mantenham o poder. O tema é recorrente também em seus textos para fundação da Quarta Internacional.

[27] Ainda que, para efetivá-la, Lenin tenha tido de lutar contra os homens de aparato de seu próprio partido, a começar por Kamenev e Stalin, que em fevereiro de 1917 defendiam a entrada no governo provisório juntamente com os mencheviques e escreviam no jornal oficial do partido, Pravda, pela fusão com os mencheviques. Lenin será acusado de “trotskismo” por se tornar abertamente adepto da fórmula da “revolução permanente” e por se associar à ideia de sovietes enquanto sistema de governo.